O título desta coluna é inspirado na música dos Beatles: The long and widing road, na qual Lennon e McCartney escrevem: the long and widing road… will never disappear, I’ve seen that road before, it always lead me here… (“a longa estrada sinuosa… nunca vai desaparecer, eu já vi esta estrada antes, ela sempre me traz até aqui”).
Os versos são uma ilustração do que espera os gaúchos na longa trajetória de recuperação. Será difícil, tortuosa, cansativa e muitas vezes frustrante. Eu gostaria de dizer que a mobilização vai continuar, que as pessoas, naturalmente, terão que retornar a seus afazeres cotidianos, mas não deixarão de ajudar os necessitados. Dizer que ninguém vai desviar recursos e doações para fins criminosos ou eleitoreiros. Que aqueles que mais precisam vão receber a maior parte das verbas de auxílio, sem burocracia e sem demora.
Eu gostaria de dizer ainda mais. Que os políticos não irão focar apenas nas próximas eleições e entender que é preciso pensar a longo prazo. Dizer que os projetos de construção de casas para quem perdeu tudo serão rápidos e eficientes. Que não haverá entraves burocráticos ou mesmo superfaturamento. Dizer que áreas sujeitas a inundações ou deslizamentos não serão ocupadas novamente. Gostaria de poder dizer tudo isso. Mas calejado por ver o que aconteceu depois de várias tragédias na Serra Fluminense e em outros lugares do Brasil, não vou poder dizer nada disso.
No entanto, com base nos meus estudos sobre as mudanças climáticas e as demais transformações do planeta, e levando em conta a condição humana, penso que há algumas coisas que eu posso dizer aos gaúchos:
Deve haver uma pausa nas chuvas no Sul
As chuvas intensas que agora ocorreram se deram no final de um ciclo do fenômeno El Niño1. Segundo os cientistas, ao longo de 2024 vai haver uma transição para o fenômeno La Niña, que causa a redução de chuvas no Sul. Isso pode ser preocupante para os agricultores, pois o Rio Grande do Sul enfrentou secas severas no último episódio do La Niña, mas dará tempo (a princípio alguns anos) para que as áreas atingidas pelas chuvas possam se recuperar. Há incertezas nessas previsões, porque o clima está se alterando de formas muitas vezes surpreendentes. Mas é o cenário mais provável.
Porém, não custa enfatizar: alguns anos é muito pouco tempo para uma recuperação tão abrangente. Ainda mais considerando que, além da reconstrução, devem ser tomadas as medidas de prevenção necessárias para o novo ciclo de chuvas.
As áreas atingidas não podem ser reocupadas
Acreditem, isso será muito difícil de evitar. Se a experiência da Serra Fluminense – e mesmo de outras áreas do Brasil – serve como referência, a demora nos projetos de reurbanização, o fato de que muitas famílias e pequenos negócios não conseguirem acesso à ajuda governamental, ou mesmo a simples tentação de morar em áreas mais acessíveis ou tornadas mais baratas por serem de risco, leva muita gente a voltar a ocupá-las.
A sociedade, os governos e todos demais envolvidos na reurbanização das cidades e recuperação das regiões rurais não devem deixar isso acontecer. Cheias voltarão a ocorrer, encostas vão deslizar novamente. Nós sabemos disso. No entanto, com o passar dos anos, principalmente se novos desastres não ocorrerem, tendemos a nos tornar complacentes, e cultivar uma esperança secreta de que aquilo tudo foi um pesadelo que não voltará a acontecer. Isso faz parte da natureza humana. Mas estaremos equivocados. Tragicamente equivocados.
Devemos nos preparar para eventos ainda piores
Não há nenhuma razão para supormos que os eventos extremos vão diminuir de intensidade ou frequência. A humanidade continua emitindo gases de efeito estufa, em quantidade até maior. Os principais processos responsáveis por essas emissões: queima de combustíveis fósseis, fabricação de aço e concreto, agropecuária, entre outros, continuam essenciais para a vida moderna, e não há perspectivas para sua substituição.
O uso de energias e materiais alternativos só tem ajudado a desacelerar um pouco o crescimento as emissões e outros tipos de degradação ambiental. Mas todos os processos danosos ao meio ambiente continuam crescendo.
Temos que nos mobilizar de maneira muito mais agressiva para mudar essa realidade. Mas também temos que nos adaptar a um planeta irreversivelmente transformado.
O fator psicológico pode ser mais importante que o econômico
Evidentemente, no curto e médio prazo, as pessoas precisam comer, ter onde morar e voltar a ter alguma renda. Não há dúvida que o fator econômico é importante. Mas não podemos subestimar o fator psicológico. Não estou falando nem mesmo do trauma causado pelo desastre, que tem sido bastante debatido.
Eu me refiro ao cansaço. Tem sido inspirador ver a mobilização de todos os brasileiros na ajuda às vítimas da tragédia. Mas aos poucos isso vai arrefecer. As pessoas terão que voltar para seus trabalhos, para as outras demandas da vida de cada um. Outras agendas – talvez até outras tragédias climáticas – vão desviar a atenção. E isso vai ocorrer enquanto a necessidade de ajuda ainda será muito grande.
Os gaúchos vão se sentir sozinhos, desamparados, esquecidos. Nesse momento, a união que estamos vendo agora, o orgulho de serem um povo forte e resiliente, terá que superar as desavenças vão surgir. As pessoas mais fragilizadas vão precisar de muito apoio. A condição psicológica das pessoas deve receber tanta atenção quanto sua situação econômica.
O Rio Grande do Sul pode servir de “modelo a toda terra” em como superar, se adaptar e combater a degradação ambiental. Mas para isso será necessário um grande esforço para manter a sociedade unida e psicologicamente forte. Não será fácil, mas como “realista esperançoso”2 espero ver isso acontecer.
Será preciso usar muita criatividade
O custo de reconstrução será muito alto. E ainda maior se utilizarem apenas as soluções convencionais. Essas soluções: diques, barreiras de contenção, construção de casas de concreto, e outras coisas assim, serão propostas e podem fazer as empresas contratadas ganharem muito dinheiro com a reconstrução.
Mas essas obras usando muito concreto, aço e asfalto que, além de não serem o que é recomendado para tornar as cidades e áreas rurais mais resilientes, vão custar muito caro.
Durante muitos anos, participei de projetos com pesquisadores das principais universidades gaúchas, incluindo UFRGS, PUC e UNISINOS. Sempre fiquei muito impressionado com a quantidade imensa de talentos que encontrei entre alunos e professores. Ao longo dos anos, vi muitos deles sendo perdidos para outros estados e países.
As universidades e outros institutos de pesquisa deveriam mobilizar todo esse talento para buscar soluções criativas para os problemas que iremos enfrentar. Cidades porosas, desocupação e restauração de áreas alagáveis, construções mais baratas e resistentes, fontes alternativas de energia, somente para citar algumas. Mas será preciso não apenas a disposição das entidades de pesquisa, mas também recursos para bolsas, materiais e demais equipamentos. Nesse sentido, o caminho que eu vejo é o governo e a sociedade gaúcha se mobilizarem para que o governo federal, que é o maior financiador de pesquisas do país, direcionar mais verbas especificamente para esse esforço de desenvolvimento científico e tecnológico. Novamente, esta é outra oportunidade para o estado servir de exemplo, e ajudar o resto do país a lidar melhor com esses problemas.
Precisamos respeitar a natureza
Isso é outra coisa que é fácil de falar, mas difícil de implementar. Desde sempre, rios de montanhas sobem de forma avassaladora quando chove forte, rios das planícies inundam suas várzeas, solos colapsam nas áreas mais íngremes, secas e queimadas ocorrem em determinados meses. Mas nós nos acostumamos a desafiar os limites impostos pela natureza. Construímos nossa sociedade moderna com base nessa premissa, mas isso não será mais possível.
Os geólogos, que estudam a história de Terra, muitas vezes “enxergam” os efeitos de eventos extremos do passado. Vemos pedras imensas em pequenos riachos de montanhas, que só podem ter sido levadas para ali por enxurradas catastróficas. Vemos sinais de inundação onde ninguém que ali mora já viu, depósitos resultantes de deslizamentos de terra que ocorreram há centenas de anos.
Se as pessoas olharem com mais atenção, vão perceber isso também. E, agora, o que podemos dizer é que esses eventos do passado tem uma probabilidade cada vez maior de voltar a ocorrer. Áreas como essas simplesmente não podem ser ocupadas, e o que está lá deve ser retirado.
No mundo transformado, o que era improvável vai se tornar provável. E o que era impossível se tornará inevitável. Nossa visão da natureza precisa mudar.
Na introdução do meu livro Planeta Hostil3 eu escrevi sobre as tragédias trazidas pelas mudanças climáticas: “Esta não é uma história que você vai ver na TV, acontecendo em algum lugar distante, ou mesmo um terrível desastre que ocorre às vezes em todo lugar. Esta é uma história de todos nós”.
Mas confesso que eu não imaginava que chegasse tão rápido, e de forma tão avassaladora…
1Os fenômenos El Niño, e sua contraparte La Niña, são denominados pelos cientistas de El Niño – Oscilação do Sul (ENOS), ou ENSO (El Niño – Southern Oscillation), na sigla em inglês, correspondem a, respectivamente, o aquecimento ou resfriamento das águas do Pacífico Equatorial resultantes do enfraquecimento ou intensificação dos ventos alísios. No Sul do Brasil, períodos de El Niño correspondem a épocas mais chuvosas, e períodos de La Niña a períodos mais secos.
2A expressão “realista esperançoso” é do Ariano Suassuna, e tem sido muito lembrada nesses dias ao se abordar a crise climática porque se trata de uma atitude que parece sensata. Não podemos nos enganar com abordagens otimistas (praticadas inclusive por negacionismo), mas também temos que confiar na nossa capacidade de lidar com nossos problemas.
3“Planeta Hostil”, meu livro que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e na Amazon.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Raffa Neddermeyer/Agência Brasil
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