Começo essas breves considerações com uma piada meio infame (mas ilustrativa, como sói acontecer com os chistes em geral): um determinado personagem, do tipo que havia sido imbrochável em priscas eras, mas na atualidade andava meio, digamos, oscilante, descobre a ajuda azul de certo fármaco, e eis que se lhe advém uma daquelas ereções dignas dos atores de filmes pornô; a pessoa com quem convivia, diante daquele evento erétil tão especial, se anima e pergunta ao personagem-protagonista da piada se seria o caso de, imediatamente, tirar proveito… Eis então que o referido protagonista responde prontamente que NÃO, de jeito nenhum – ele, ao invés disso, iria para a birosca da esquina, exibir orgulhosamente sua ereção para os parças!
Como é do conhecimento amplo, ocorrem, nesse país, aqui e ali, irrupções de falas em que certos personagens alardeiam, orgulhosamente, as respectivas condições de “imbrocháveis”. Não tenho certeza se o termo está dicionarizado, mas é de ampla circulação – creio poder poupar a leitora e o leitor de uma definição. Há algum tempo atrás, na gestão presidencial precedente, neste país, eis que, em plena comemoração cívico-fálico-militar do 7 de setembro, um coro de [supostos] imbrocháveis é engrossado pelo [suposto] imbrochável-mor, e todos, efusivamente, em compartilhamento viril, entoaram o grito “imbrochável!” / “imbrochável!” / “imbrochável!” Edificante.
O Dr. Sigmund Freud aludiu, em seus escritos, a algumas vias de emergência de pulsões inconscientes no âmbito da consciência, como seria o caso dos sonhos, dos chamados atos falhos, e do chiste (o gracejo, a piada, a ironia, o jogo de palavras que tira proveito do duplo sentido). O chiste, em suas múltiplas representações, é indubitavelmente atravessado por energia psíquica constatável na explosão da risada, da gargalhada que frequentemente desencadeia. Tal chiste seria portador, segundo Freud, de impulsos profundos e de sentido para além e para aquém do valor de face – estaria aí, nesse significado latente, a graça do chiste. Do que nos fala a piada comentada acima?
O evento que rememorei, naquele sete de setembro, em linha com a análise freudiana, me remete a uma tosca reflexão antropológico-psicanalítica. A imbrochabilidade aparece, nas cenas aludidas tanto na efeméride quanto na piada, como um adereço, um estandarte, um troféu de “viris” para “viris”, em última análise um “affaire d’hommes”, coisa de macho, cujos destinatários são os parças, e não uma outra pessoa investida de afeto e/ou tesão real. A ênfase instrumental na ereção do/pelo imbrochável alude, tragicamente, a uma fixação fálico-narcísica que perde de vista a finalidade última da libido, que é o encontro de pessoas via compartilhamentos os mais variados – dentre os quais a penetração.
Dia desses, um menino, entrando na puberdade, filho de classe média brasileira razoavelmente bem-informada, perguntou ao pai se “ser um homem hétero era uma coisa ruim”. Passado o susto da pergunta à queima-roupa, o pai, às voltas com a tarefa de criar um homem no contexto ainda tóxico da cultura brasileira, respondeu que não, não era uma coisa necessariamente ruim, a depender de como cada homem vivia sua identidade e condição, em relação com as outras identidades e condições. O menino ouviu, e oxalá tenha escutado. Alguns homens têm efetivamente se queixado do quão difícil se tornou ser homem na contemporaneidade. Sentem-se pressionados, acossados, ameaçados, postos sob suspeição como um grupo maldito. Outros grupos, notadamente aqueles empenhados na luta em defesa das mulheres e de homens não-hetero, reagem a tais queixumes com reação entre o desdém e o rancor, na linha do “colham o que plantaram”. Tais grupos fazem uso do termo “machosfera” para se referirem a um certo ecossistema social e cultural em que uma misoginia ancestral, agravada por patriarcalismo, racismo, ignorância e violência, geraria um ambiente tóxico, com desdobramentos para a cena social, cultural e política mais ampla. Tais desdobramentos muitas vezes são sutis, verbalizados por pessoas gentis, que apenas avaliam como plenamente justificável a manutenção de nichos sociais de poder para os homens (ser ministro(a) religioso(a), e eventualmente papa, por exemplo…). As mulheres respondem com o mote “uma mulher pode fazer tudo aquilo que queira fazer”, mas isso ainda é predominantemente um grito de guerra, e não uma postura próxima da hegemonia. Na calada da gestão de recursos humanos das empresas, mundo ocidental afora, as mulheres ainda e predominantemente ganham menos que os correlatos profissionais masculinos. As justificativas “objetivas” são várias, mas no fundo todas aludem a aspectos “estruturais” da feminilidade que inviabilizariam uma plena equiparação com os homens. Há menos de dois séculos atrás, por exemplo, considerava-se que a feminilidade inviabilizava uma avaliação política adequada por parte das mulheres, donde a exclusão das mesmas do rol de cidadãos aptos a votar…
Em 1996, o então jovem escritor argentino Federico Andahazi provocou escândalo ao ganhar um prêmio para escritores estreantes na Argentina, prêmio que foi vetado em função da suspeição de caráter pornográfico da obra que Andahazi apresentou ao certame, O Anatomista. O romance fez imenso sucesso na Argentina e em vários outros países, inclusive o Brasil, onde foi traduzido e publicado. Trata-se de narrativa acerca das descobertas do anatomista Mateo Realdo Colombo, que desbrava, tal qual o outro Colombo, o navegador, regiões inóspitas do continente corporal feminino – notadamente o kleitoris (clitóris), até então desconhecido dos homens-anatomistas e todos os demais. Mateo descobre que esta parte da anatomia feminina seria a chave do Amor Veneris, o amor carnal, a fruição do prazer e do gozo feminino. No romance, tentando não dar spoiler, isso foi suficiente para atrair a maldição sobre a prática satânica do anatomista e seus discípulos. Na Argentina, o livro foi, em primeira instância, banido. Em ambos os casos, é notável o estranhamento, o banimento, a interdição, a satanização da sexualidade feminina através do ocultamento, durante milênios, de um de seus elementos corporais cruciais. Não por acaso, aliás, em várias culturas ocidentais se pratica, até hoje, a excisão do clitóris em meninas, geralmente pré-púberes, mutilação que se avalia atingir em torno de 200 milhões de meninas, segundo dados da ONU, que propôs a data de 6 de fevereiro como Dia Internacional da Tolerância Zero para a Mutilação Feminina.
Isso nos remete de volta ao grupo de imbrocháveis aludidos no título desse texto. Realidade ou propaganda enganosa, o que está em questão é um lamentável desconhecimento, no sentido mais amplo da palavra, do que seja viver a sexualidade – a do imbrochável e aquela do que alguns psicanalistas chamam de Outro. Depois de orgulhosamente exibir aos parças o membro ereto como os canhões do desfile, tomara que cada um desses imbrocháveis evolua no sentido de descobrir, pós-infância psíquica tardia, com quantos [e quais] paus se faz uma canoa – para terminar mais uma vez em tom de chiste…
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