Nos meus tempos de piloto de linha aérea, vivi muitas situações que, “nos vagares de algum verão”, passarei para o papel. Um episódio, no entanto, por ser tão verossímil quanto estranho, irei contar aqui e agora…
Um dia, pilotando entre Rio e Belém um dos velhos Curtiss Comander C46, que eram como besouros – voavam contrariando as leis da aerodinâmica -, ao passar pela cabine dos passageiros, fui chamado por um deles. Confundindo-me com um comissário de bordo, pediu para lhe cortar o bife do lanche. Quando descobriu que eu era o piloto, a carne já estava cortada e uma conversa inteligente e cordial tinha se estabelecido.
Tratava-se de um geólogo que trabalhara no Oriente Médio, numa companhia de petróleo inglesa, e lhe faltava a mão direita. Explicou-me que tinha dificuldades para executar algumas tarefas, mas tantas amizades fizera ao contar a causa do defeito que, às vezes, até se divertia com ele.
Revelou-me então que, recém-formado, em parte por espírito de aventura e mesmo por não conseguir emprego, aceitou a oportunidade da empresa britânica que iniciava a prospecção de petróleo num país árabe. Solteiro, morava numa confortável e ampla casa e tinha a seu serviço um empregado tão eficiente quanto confiável.
Eis que um dia a confiança transformou-se em sólida suspeita quando do sumiço de seu Patek Phillip de ouro. Bela e preciosa joia foi comprada em Londres numa de suas viagens à sede da empresa.
Com certa relutância, diante das negativas do até então honrado serviçal, mesmo assim resolveu demiti-lo e denunciá-lo à polícia.
Dias depois, ao tentar se informar do destino do ex-empregado, ouviu estarrecido, do comissário do dia, que o ladrão já tinha sido castigado de acordo com as leis islâmicas, isto é, sua mão fora decepada. É claro que um enorme sentimento de culpa invadiu a consciência de meu passageiro que, entre um e outro gole de café, contou-me o fim da história.
Com a vaga deixada pelo infeliz ex-empregado, a desordem e a sujeira tomaram conta de sua casa e um novo caseiro foi contratado. Todos os móveis tiveram de ser deslocados para completar a limpeza, e tão minuciosa ela foi feita que, debaixo de um sofá, foi encontrado o Patek Phillip de ouro.
No mesmo dia, o geólogo dirigiu-se à polícia para informar de seu terrível equívoco, pois já que não podia recuperar a mão, faria tudo para restituir a honra de quem tinha sido injustamente castigado. Revelado o fato do encontro do relógio, de imediato o acusador passou a acusado, preso, julgado e castigado como mandam as leis islâmicas: sumária e cruentamente. No mesmo dia, foi-lhe decepada a mão direita.
Após alcançar-lhe um Cointreau que o comissário de bordo ofereceu, despedi-me entre horrorizado e condoído com o infortunado geólogo, pois meu colega de pilotagem chamava-me para iniciar o procedimento de pouso do velho Curtiss Comander C46 no aeroporto de Val de Cães, de Belém do Pará.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
Foto da Capa: Wikimedia Commons
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