A derrota apertada de uma ideia de país, nas últimas eleições, me faz pensar no “espírito do tempo”, nosso Zeitgeist como dizem os alemães. Qual é o nosso? O do presidente derrotado, avesso às conquistas libertárias dos últimos 60 anos? Há no ar um novo espírito ou corremos o risco de voltar à família tradicional em torno do pátrio poder, da discriminação de minorias nada minoritárias como mulheres e negros, da discriminação de minorias reais como os LGBTQIA+ e tantas outras? Intuitivamente, a resposta é NÃO. Mas, infelizmente, a intuição não tem os pés no chão, facilmente confunde desejos com realidade.
Mais pragmático é buscar entender de onde vem o gozo que alimenta tantos seres humanos com esses princípios que eu e muitos de vocês consideramos historicamente substituídos. Eu ia dizer superados, ou atrasados, mas essa ideia de progresso linear, hegemônica no século passado, é justamente o que define o mundo anterior. O que gostaríamos que fosse o nosso mundo, o mundo contemporâneo, já não teria esse pressuposto. Acho que está aí uma das maiores dificuldades para implantar esse novo mundo. Eu, você e muitos outros não queremos um mundo que ande para frente. Queremos um mundo que seja. Mas quantos somos? A indústria, o comércio e a publicidade pensam e agem assim? Alguma coisa realmente mudou no espírito do tempo? Acho que muito pouco.
Ainda não aguardamos que o carro, o celular ou o tênis desse ano seja superior ao do ano passado e inferior ao do próximo ano? Ainda não acreditamos que andamos para a frente? Claro, agora, acompanhados de um discurso ambiental, certos de que a indústria será cada vez mais verde e, portanto, progredindo no sentido correto. E lá está ela, a mesma palavra de sempre: progresso!
Le Corbusier (projeto da foto da capa), na primeira metade do século passado, foi um desses ápices do pensamento da arquitetura e do urbanismo. Genial, um Picasso da arquitetura, ele captou como ninguém a necessidade de revolucionar a arquitetura e as cidades para o mundo mecanizado. Traduziu o espírito desse novo tempo em ideias, projetos e muitas obras. Foi excessivamente radical em muitas de suas propostas, principalmente as urbanas. Seus pensamentos seguem tendo forte presença na atmosfera acadêmica e intelectual. É bom conhecê-lo criticamente para entender muito do nosso mundo ainda que a roupagem, hoje, seja diferente. (leia mais sobre Le Corbusier nas colunas do Maturino da Luz, AQUI na Sler)
De todas as suas propostas, a que eu acho mais problemática foi a vontade de transpor a lógica do mundo mecânico para a dos seres humanos. Ele respondeu como ninguém à demanda de organização da vida da sociedade, da família e do indivíduo a partir dos princípios da fábrica. O homem-máquina habitando a máquina de morar, na expressão dele mesmo. Idealizou, inclusive, uma matematização da arquitetura, criando um sistema de medidas que seria referencial para tudo o que fosse projetado no mundo. A arte finalmente dominada em sua irreverência natural. A arte disciplinada, eliminada a sua subversão incontida.
Para alcançar esse objetivo era necessário encontrar a medida certa de todas as coisas a partir de um ser humano padrão. E Le Corbusier o encontrou: um homem de 1,83m de altura. A partir desse homem – por certo que seria um homem! –, construiu seu sistema e o publicou na forma de livro com o nome Modulor (módulo de ouro). Tenho em casa o volume 2, em espanhol. Posso dizer que é confuso, cheio de depoimentos auto elogiosos, poesias, sequências de números e desenhos de projetos do próprio autor. Um esforço impresso para provar que o novo sistema era a melhor solução para a organização do mundo. Não adiantou, não foi levado a sério. O mundo tinha seu próprio sistema para alcançar esse objetivo.
Mas não estou aqui para falar mal desse livro. Aliás, ele nem mereceria ser acordado do seu sono profundo. O que eu quero é chamar a atenção para o quanto o espírito da época de hoje aparentemente se diferenciou do que havia no entre e no pós-guerra. Quero chamar à atenção para a importância do reconhecimento do diferente – do outro –, coisa que até os anos 1960 não se fazia. Intelectuais do porte de Le Corbusier advogavam o contrário. Buscava-se um mundo padronizado, disciplinado, para favorecer a ordem, a sistematização do trabalho, da educação, da cultura, da própria vida. A sociedade organizada como colônia de abelhas. E aqui uma curiosa associação: o hexágono, forma básica das colmeias, passou a ser obsessão de muitos arquitetos.
Esse mundo giraria em torno do homem – leia-se: do homem sadio –, de grande estatura, mais alto que a altura média do francês de hoje, que é de 1,74m. E os mais baixos ou mais altos? E as mulheres (hoje com, em média, 1,62m na França)? As crianças? As pessoas com deficiência? O rol é grande. Hoje essa ideia chega a ser risível, pueril, mas era a sério, respondia a uma ideologia dominante nos chamados primeiro e segundo mundos. Le Corbusier simplesmente a decodificou e a publicizou.
Pode-se caracterizar o século XX de muitas formas: autoritário, inventivo, sangrento, veloz. Entre tantos qualificativos, a maioria pouco honrosos, me impressiona o nascimento do fascismo: a lenta transformação do povo em massa homogênea, manipulável, capaz de ser levada ao ódio irracional, a matar os diferentes e chegar ao genocídio — limite da desumanização da humanidade. É essa diretriz hegemônica, da sociedade de massas, homogênea e padronizada, para funcionar como uma fábrica, que se infiltrou no pensamento de alguns arquitetos até o final da II Guerra. A tentação era grande: o arquiteto-deus, a serviço do rei (figurado), desenhando o mundo à sua vontade. Que o diga Albert Speer, arquiteto de Hitler. Que o diga a obsessão de Hitler de redesenhar o mundo. Que diga Le Corbusier e seu poder de encontrar soluções simplificadas para problemas tão complexos como o da vida em sociedade.
Para os que assistiram com isenção intelectual o que vivemos no Brasil nesses últimos quatro anos, não é difícil entrar no clima que dominou a Europa no período do entre guerras apesar do exotismo do nosso fascismo terraplanista. Aqui dominou a pasteurização das ideias, o ódio ao diferente (lá também), a negação das evidências científicas, a teocratização do Estado e tantas outras afrontas às conquistas do pensamento iluminista. A diferença é que nós – digo isso com uma felicidade e orgulho muito grande, pós eleição –, vencemos o fascismo no voto antes que a máquina da morte se estabelecesse com todo vigor em nosso país. Teremos forças para garantir a vitória de hoje? Também conseguiremos provar que parar o mundo não é parar a vida, mas muito antes o contrário?