Está na moda fazer listas. De dar ordem às nossas preferências. Dias atrás, eu mesmo fui um dos convidados pela revista Placar (excelente edição atual) para dar a escalação do Grêmio de todos os tempos. Onze titulares e o técnico.
Fiz as minhas escolhas e acho que fui coerente. Mas poderia ter escolhido alguns jogadores diferentes se houvesse critérios mais definidos. Quem foi o melhor centroavante da história gremista? O espetacular Suárez, que fez apenas uma temporada e não conquistou nenhum título, ou o Alcindo, até hoje o maior artilheiro gremista – 229 gols, 13 deles em Grenais – e muitos títulos conquistados? É justo que no gol, na zaga e no meio de campo escolhi três jogadores que nunca vi atuarem?
Muitos dizem que listas são esquisitas, quase absurdas. Não para mim e meu grande amigo Carlos Tannenbaum! De repente, lá vem a pergunta: “Quem foi melhor: o Luiz Gonzaga ou o Gonzaguinha?”, “a Elis ou a Gal?” Eu e meu amigo discutimos calorosamente, ainda que muitas vezes nem tenhamos certeza das nossas opiniões. É ele dizer “X” que respondo com “Y”. Defendo minha posição com unhas e dentes e ouço atento os argumentos contrários. É bom aprender através das informações e argumentos dos amigos inteligentes. (Oxalá ele pense o mesmo quando ouve o que digo.)
Também minha mulher já entrou na onda. Hoje mesmo, manhã de sábado, 19 de janeiro, ela estava séria à mesa, sem ao menos dizer “bom dia” desde que acordou. Percebi que tinha algo importante para discutir. Em que cidade moraremos, agora que voltamos ao Brasil? Como faremos para controlar os gastos? Qual será nosso plano de saúde?
Ela indagou:
– Gene Kelly ou Fred Astaire?
O tema desta crônica começou com uma disputa, em um grupo de amigos no WhatsApp, entre Caetano e Chico. Como sou Chico desde criancinha, não quis perder tempo discutindo se a Terra é redonda e encerrei o assunto. Ops, caro leitor, cara leitora, escolhi mal a expressão, já que “Terra” é justamente uma das mais lindas canções do gênio Caetano:
“Quando eu me encontrava preso/Na cela de uma cadeia/Foi que eu vi pela primeira vez/As tais fotografias/Em que apareces inteira/Porém lá não estavas nua/E sim, coberta de nuvens/Terra, terra! Por mais distante/O errante navegante/Quem jamais te esqueceria?”
Mas meus interlocutores queriam polêmica.
– Então falemos sobre o teu preferido. Qual é a melhor música do Chico Buarque?
Não quis responder na hora. Pedi um tempo, ainda que seja quase impossível responder com precisão. Eu mesmo, ainda mais que no caso do futebol, poderia ter uma opinião diferente se a pergunta tivesse sido feita em outra época. Há dez anos. Ou mesmo ontem. Ou amanhã.
Mas vou responder, por aqui, neste espaço semanal de crônicas que tenho na Sler.
Aqui, para a escolha, defini um critério: é preciso diferenciar o que é a música mais genial, a que mais gosto e qual é a melhor. Muitas vezes, tudo converge para uma só canção. Mas nem sempre.
Para ficar claro, vamos sair da música, entrar na literatura e falar (não muito, prometo) sobre Machado de Assis. Através dele, consigo situar melhor essas diferenças.
A mais genial obra de Machado é Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança essas memórias póstumas.”
Que início surpreendente! Que literatura fantástica! Um morto narra o livro e o dedica a um verme!
O livro todo é genial, mas destaco esse começo e sua total conexão com o final, em que o narrador não tem a quem dedicar sua obra: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Mas o mais genial dos livros de Machado de Assis não é o que mais nos comove, nos envolve, nos choca. Essa posição cabe à obra em que o personagem, Bentinho, teve sim um filho, mas que pode nem ser dele. Bento Santiago, o Bentinho, amou, mas talvez fosse traído pela mulher. Com Escobar, seu melhor amigo!
Como é angustiante ler Dom Casmurro e como a obra leva a discussões intermináveis sobre a traição – ou não – de Capitu, com aqueles “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. A dúvida e a angústia de Bentinho são cruéis e habilmente divididas por Machado de Assis com a gente: nós, os leitores!
Esse livro perturbador também não é o melhor romance do maior dos escritores brasileiros.
Quincas Borba, com seu irônico e hoje icônico “ao vencedor as batatas”, é o ganhador da minha lista. É o livro que tem a melhor história e os personagens – Rubião, Quincas Borba (o filósofo e o cachorro), Sofia Palha, Cristiano Palha. Dr. Camacho, Carlos Maria… – melhor construídos.
Ao longo das páginas, vemos a crítica mordaz – ao mesmo tempo trágica e cômica – à sociedade carioca do século 19; a filosofia do “Humanismo”, criada por Quincas Borba, onde está presente a darwiniana Seleção Natural, em que os fracos sucumbem aos mais fortes; a possibilidade do adultério (olha ele aí o tema de novo…) e a ascensão, apogeu, crise e queda de Rubião, que recebera toda a fortuna do amigo Quincas Borba, mas que acaba sucumbindo à loucura e à solidão.
Quincas Borba não é o mais genial, nem é o que mais nos impressiona, mas é o melhor livro de Machado de Assis!
Mas voltemos, como prometido, às canções do Chico…
A música mais genial de Chico Buarque de Holanda é, sem dúvida, Construção.
Com sua estrutura inovadora, versos dodecassílabos (12 sílabas poéticas), repetições de versos com mudanças sutis de palavras que mudam sentidos e perspectivas das ações; a crítica social e a mecanização do trabalho (de certa forma, embora não haja humor e o personagem não trabalhe em uma fábrica e sim na construção civil, Chico Buarque me remete a Tempos Modernos, de Chaplin).
Veja a letra:
“Amou daquela vez como se fosse a última/Beijou sua mulher como se fosse a última/E cada filho seu como se fosse o único/E atravessou a rua com seu passo tímido/Subiu a construção como se fosse máquina/Ergueu no patamar quatro paredes sólidas/Tijolo com tijolo num desenho mágico/Seus olhos embotados de cimento e lágrima/Sentou pra descansar como se fosse sábado/Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe/Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago/Dançou e gargalhou como se ouvisse música/E tropeçou no céu como se fosse um bêbado/E flutuou no ar como se fosse um pássaro/E se acabou no chão feito um pacote flácido/Agonizou no meio do passeio público/Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
Amou daquela vez como se fosse o último/Beijou sua mulher como se fosse a única/E cada filho seu como se fosse o pródigo/E atravessou a rua com seu passo bêbado/Subiu a construção como se fosse sólido/Ergueu no patamar quatro paredes mágicas/Tijolo com tijolo num desenho lógico/Seus olhos embotados de cimento e tráfego/Sentou pra descansar como se fosse um príncipe/Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo/Bebeu e soluçou como se fosse máquina/Dançou e gargalhou como se fosse o próximo/E tropeçou no céu como se ouvisse música/E flutuou no ar como se fosse sábado/E se acabou no chão feito um pacote tímido/Agonizou no meio do passeio náufrago/Morreu na contramão atrapalhando o público.
Amou daquela vez como se fosse máquina/Beijou sua mulher como se fosse lógico/Ergueu no patamar quatro paredes flácidas/Sentou pra descansar como se fosse um pássaro/E flutuou no ar como se fosse um príncipe/E se acabou no chão feito um pacote bêbado/Morreu na contramão atrapalhando o sábado/Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/A certidão pra nascer, a concessão pra sorrir/Por me deixar respirar, por me deixar existir/Deus lhe pague/Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir/Pela fumaça desgraça que a gente tem que tossir/Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair/Deus lhe pague/Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir/E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir/E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir/Deus lhe pague!”
Pare, leitor, leitora, por alguns bons minutos de ler o meu artigo e ouça com atenção a música do Chico. É igualmente espetacular. A orquestração caminha junto com a letra e traz, no ritmo e arranjo, batidas repetitivas e cada vez mais intensas e opressoras, como a dura rotina do trabalho braçal no País.
Construção é, repito, a mais genial das músicas do Chico Buarque de Holanda!
Mas não é a que mais comove. No caso da música, esse ‘item’ é o mais subjetivo e o que mais muda ao longo dos tempos. Sim, as canções majoritariamente são as mesmas. Mudamos nós! E muito.
Eu mesmo já tive diversas e distintas opiniões sobre a música de que mais gosto do Chico. Nos tempos da ditadura militar, a música que mais me comovia era Apesar de Você.
“Amanhã vai ser outro dia/Amanhã vai ser outro dia/Amanhã vai ser outro dia/Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão, não/A minha gente hoje anda/Falando de lado/E olhando pro chão, viu/Você que inventou esse estado/E inventou de inventar/Toda a escuridão/Você que inventou o pecado/Esqueceu-se de inventar/O perdão… Quando chegar o momento/Esse meu sofrimento/Vou cobrar com juros, juro/Todo esse amor reprimido/Esse grito contido/Este samba no escuro.”
Também já preferi, entre tantas, a seguinte letra: “Ah, se já perdemos a noção da hora/Se juntos já jogamos tudo fora/Me conta agora como hei de partir/Se ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios/Rompi com o mundo, queimei meus navios/Me diz pra onde é que inda posso ir/Se nós, nas travessuras das noites eternas/Já confundimos tanto as nossas pernas/Diz com que pernas eu devo seguir/Se entornaste a nossa sorte pelo chão/Se na bagunça do teu coração/Meu sangue errou de veia e se perdeu/Como, se na desordem do armário embutido/Meu paletó enlaça o teu vestido/E o meu sapato inda pisa no teu/Como, se nos amamos feito dois pagãos/Teus seios inda estão nas minhas mãos/Me explica com que cara eu vou sair/Não, acho que estás te fazendo de tonta/Te dei meus olhos pra tomares conta/Agora conta como hei de partir…”
Como não se comover com Eu Te Amo ao fim de uma, mais uma, história de amor?
Hoje – e já há algum tempo – a música de que mais gosto do Chico Buarque é Maninha.
“Se lembra da fogueira/Se lembra dos balões/Se lembra dos luares dos sertões/A roupa no varal, feriado nacional/E as estrelas salpicadas nas canções/Se lembra quando toda modinha falava de amor/Pois nunca mais cantei, oh maninha/Depois que ele chegou./Se lembra da jaqueira/A fruta no capim/Dos sonhos que você contou pra mim/Os passos no porão, lembra da assombração/E das almas com perfume de jasmim/Se lembra do jardim, oh maninha/Coberto de flor/Pois hoje só dá erva daninha/No chão que ele pisou/Se lembra do futuro/Que a gente combinou/Eu era tão criança e ainda sou/Querendo acreditar que o dia vai raiar/Só porque uma cantiga anunciou/Mas não me deixe assim, tão sozinho/A me torturar/Que um dia ele vai embora, maninha/Pra nunca mais voltar.”
Nenhuma canção me encanta tanto quanto essa. Nenhuma me serve tanto de inspiração e suporte. Poxa vida, são tantas as perdas, as dores e as dificuldades, que eu, aos 63 anos, luto muito, o tempo inteiro, para seguir em frente, para continuar acreditando que a vida é boa, linda e bela, que tudo vai raiar, que tudo dará certo, só porque era o que diziam as canções da minha infância.
Mas a música que mais gosto, Maninha, assim como a mais genial, Construção, não é a melhor música do Chico Buarque!
Em “Olê, Olá”, Chico chega ao auge. Domina a narrativa com leveza e maestria. É a melhor música do maior compositor brasileiro pelo que tem de bela e por sua genialidade e complexidade escondidas na aparente simplicidade.
Veja o início da canção:
“Não chore ainda não, que eu tenho um violão/E nós vamos cantar/Felicidade aqui pode passar e ouvir/E se ela for de samba há de querer ficar/Seu padre toca o sino que é pra todo mundo saber/Que a noite é criança, que o samba é menino/Que a dor é tão velha que pode morrer/Olê, olê, olê, olá/Tem samba de sobra, quem sabe sambar/Que entre na roda, que mostre o gingado/Mas muito cuidado, não vale chorar”
Chico traz a felicidade. Tem a música e a certeza de que podemos ser felizes. Com sua voz e violão, é como a banda que chega. Eu, Chico, tenho um violão e vou te fazer feliz. Nós vamos cantar!
Logo depois, o cantor e compositor diz:
“Não chore ainda não, que eu tenho uma razão/Pra você não chorar/Amiga, me perdoa, se eu insisto à toa/Mas a vida é boa para quem cantar/Meu pinho, toca forte que é pra todo mundo acordar/Não fale da vida, nem fale da morte/Tem dó da menina, não deixa chorar/Olê, olê, olê, olá/Tem samba de sobra, quem sabe sambar/Que entre na roda, que mostre o gingado/Mas muito cuidado, não vale chorar”.
Repare que não há mais a certeza absoluta. Não é apenas o violão que tudo pode. Agora, Chico usa da razão. Tem que explicar por que a felicidade é possível. É como no amor, quando não há mais “apenas” a paixão absoluta, quando temos que discutir a relação.
“Amiga, me perdoa, se eu insisto à toa, mas a vida é boa para quem cantar…”
Por fim, não há mais a certeza, nem mesmo uma razão plausível. O que Chico Buarque nos traz é uma mera impressão de que a felicidade será realidade.
“Não chore ainda não, que eu tenho a impressão/Que o samba vem aí/É um samba tão imenso que eu às vezes penso/Que o próprio tempo vai parar pra ouvir.”
Mas o Chico é realista. Depois que a banda passa, tudo volta ao seu lugar. O tempo não para. Ainda assim, ele tenta ir contra sua própria natureza e contra a natureza do mundo:
“Luar, espere um pouco, que é pra o meu samba poder chegar/Eu sei que o violão está fraco, está rouco/Mas a minha voz não cansou de chamar/Olê, olê, olê, olá/Tem samba de sobra, ninguém quer sambar/Não há mais quem cante, nem há mais lugar/O sol chegou antes do samba chegar/Quem passa nem liga, já vai trabalhar.”
Não, definitivamente o tempo não para. O Luar não espera. Imagine o Chico sentado na calçada, com seu violão no braço, as pessoas passando, como máquinas, apressadas rumo ao trabalho, ao pão nosso de cada dia.
Coitadinho do Chico. De mim. De todos nós.
E ele termina a música dizendo, como num lamento:
– E você, minha amiga, já pode chorar…
Olê, Olá é, “sem dúvida”, a melhor música do Chico.
Espero que o Carlos Tannembaum e você escrevam para discordar (ou não) da minha opinião…
P.S – O assunto da crônica é música, mas deixo aqui a minha escalação do Grêmio (cujo hino foi composto pelo grande Lupicínio Rodrigues), que saiu na Placar: Eurico Lara, Arce, Airton Pavilhão, De Leon e Everaldo; Dinho, Gessy e Ronaldinho; Renato Portaluppi, Alcindo e Mário Sérgio. Técnico: Felipão.
Todos os textos de Airton Gontow estão AQUI.
Foto da Capa: Duda Groisman.