Junto com as águas da enchente que assolou o Rio Grande do Sul, uma enxurrada de imagens impactantes, sentimentos e emoções têm nos carregado de roldão. Há poucos dias, quando as chuvas novamente alagaram, vazando pelos bueiros do bairro Menino Deus, em Porto Alegre, assisti uma reportagem em uma emissora de TV. O repórter, visivelmente emocionado, mostrou aos telespectadores uma foto que encontrou boiando nas águas da chuva. A foto estava junto a muito lixo e entulhos que eram arrastados pela correnteza. Ela parecia antiga, retratando uma menina e uma jovem mulher numa comemoração. O repórter disse que a guardou, por acreditar que poderia ser importante para alguém.
Enquanto assistia, lembrei que tanto minha avó, como minha mãe tinham o hábito de guardar alguns objetos, papéis e fotos dentro de uma gaveta. O que mais me instigava, ao ver o interior destas gavetas, era entender o motivo ou critério que as fazia guardar ou não guardar alguma coisa. Por que aquelas fotos? Por que coisas como um pequeno frasco vazio, um brinco desparceirado, um papel de bombom ou um lenço bordado?
Com o passar do tempo, descobri as gavetas de meus irmãos mais velhos. Seus guardados também continham lembranças especiais ou o rastro de uma memória afetiva. Com o tempo, eu também comecei a “cultivar” uma gaveta de acervos pessoais. Até hoje, guardo algumas coisas em especial. Às vezes, tento dar uma “esvaziada”. É o momento de validar ou revalidar o que permanece e o que pode ser substituído por uma lembrança mais recente. Em poucas vezes, pus fora coisas que já não tinham nenhum valor para mim. Vira e mexe, acrescento mais algum objeto ao meu acervo, sempre com a certeza de que assim não me esquecerei da memória que ele carrega.
Após relembrar tudo isso, volto a pensar nas cenas que a televisão e as redes sociais têm nos mostrado. São muitos lares transformados em entulho. Montanhas de objetos carregados de memória afetiva misturados ao que virou lixo. Quantas fotos ainda podem ser encontradas? Quantos objetos que não tinham tanto valor para uma família, passarão a ter um status de relíquia? Quantos pedaços poderão ajudar a contar as histórias e vivências que aconteceram antes da enchente?
Talvez, para aqueles que perderam tudo ou quase tudo, as memórias passem a ser como âncoras. Ao ver os destroços do que foi arrastado pelas águas, penso nas peças de um quebra-cabeça. Cada peça trazendo consigo lembranças e narrativas, como testemunhos que poderão ajudar a reconstituir o passado, construindo pontes para o futuro.
Espero que, aos poucos, as partes de alguns “todos” possam se juntar. A amálgama que irá juntar tantas partes serão as narrativas que transmitem a herança do que já foi vivido. A partir dessa colagem, as palavras evocadas pelos objetos poderão organizar, de dentro para fora, um novo caminho.
Guardar, cultivar e transmitir memórias é cuidar do que se é, cuidar de si e dos outros.
Jussara Kircher Lima é psicóloga. Após se aposentar do serviço público, tem se dedicado à escrita, em especial nos seus principais temas de interesse: literatura, psicologia e políticas públicas. E-mail: jussaraklima@gmail
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