Olha a chuva que chega!
É a enchente.
Olha o chão que foge com a chuva …
Olha a chuva que encharca a gente.
Enchente, Cecília Meireles
O clima como construção social
A enchente mudou nossos hábitos. A sucessão de dias chuvosos no mês de maio fez com que o porto-alegrense olhasse mais para o céu. A enchente produziu um trauma coletivo que tornou a previsão do tempo uma atividade fundamental do dia a dia. As reportagens sucessivas nos abrigos públicos com as populações atingidas, apontaram como o radinho de pilha passou a ser um lugar de comunicação essencial para acompanhar o que está acontecendo ao seu redor. O cidadão comum abrigado, e não foram poucos pois chegaram a mais de 500 mil pessoas, passaram a ouvi-los mais uma vez: agora, o cidadão está interessado no que diz a previsão do tempo. Diz Renzo Taddei em Meteorologistas e profetas da chuva: conhecimentos, práticas e políticas da atmosfera (Terceiro Nome, 2017) que a previsão do tempo é uma construção social, um entrelaçamento entre ciência e poder. É ciência porque nos diz o que acham que melhor será o tempo; é poder pois exerce uma notável força sobre o cidadão. Se há previsão de chuvas, melhor não sair de casa. Se haverá deslizamento, é o contrário, melhor sair. O tempo é esse objeto de luta entre políticos que dizem que não é tão forte assim “será só uma chuvinha”, como diz o diretor do DMAE quando os meteorologistas alertaram de retorno de chuvas, ainda que a população sofra seus efeitos, e meteorologistas que fazem tudo para prever o tempo, inclusive os seus erros. Todos querem controlar forças que estão fora de seu controle, finaliza Taddei.
Se o clima é uma construção social, como ele fica em tempos neoliberais? A desertificação dos biomas nordestinos é efeito também da substituição da caatinga com o desmatamento provocado pelo agronegócio como as chuvas do sul são efeito do avanço crescente sobre florestas e áreas de drenagem. Em tempos neoliberais, sempre estamos diante dos efeitos da predação capitalista sobre o meio ambiente. Aqui, diz Taddei, a cultura popular e os interesses de mercado se contrapõem na definição social da paisagem. Quando o cidadão diz “nunca vi chuva igual”, essa admiração pela novidade é também uma lição de cultura, é prova de uma cognição, de um aprendizado lento das características do clima. Ele sabe que as chuvas vêm e vão, mas que não passam de um limite. Eles sabem que é preciso plantar e colher em determinadas épocas. Esse saber do tempo, entretanto, está perdendo seu espaço para os efeitos da ação instrumental do capital em sua vocação para destruir e subordinar o mundo natural às leis do mercado. É que o tempo previsto pela meteorologia não fica limitado a um “faça chuva ou faça sol”, fica à mercê de outros fatores. Para Taddei, tanto a seca como a enchente são produtos de manipulação político-econômica, de projetos que vitimizam a natureza e interesses no uso do solo e a ocupação dos vales de rios. Pesquisa publicada no G1 afirma que mais da metade das áreas verdes do Rio Taquari que deveriam servir como barreira natural para as águas está derrubada ou ocupada. Sem matas ciliares e mais ocupação urbana, está dada a receita da catástrofe da enchente. No momento em que se constrói um discurso sobre o clima, sobre o tempo, ele vira alvo de disputa social.
O clima como problema político
As chuvas abundantes de maio não ultrapassaram as estatísticas e as previsões das medias pluviométricas previstas. Os meteorologistas haviam avisado que seriam em grande volume A indeterminação partiu justamente daqueles que tem a obrigação de garantir a segurança, o governo, justamente nesse espaço que tem no tempo a possibilidade de decidir sobre o nosso futuro, como fez com a enchente. É um tempo-espaço particular o vivido pelos atores, sejam governantes ou cidadãos, mas somente a tragédia destes últimos que a atravessaram neste momento é que pode testemunhar seus efeitos. Saber que praticamente uma cidade inteira como Muçum foi varrida do mapa não estava na previsão das estatísticas, é verdade. Esta ausência de explicação, diz o autor de Meteorologistas e profetas da chuva “que na linguagem do antropólogo Evans-Pritchard, permite uma explicação paralela à da causalidade eficiente – a “segunda lança”, ou seja, a causalidade de agentes-espíritos. Há uma lança visível que causa a morte; e há uma lança invisível que especifica por que, nesse caso particular, a doença matou: por que esse indivíduo em particular?”
Das explicações míticas dos povos primitivos às explicações da previsão do tempo é sempre essa ambiguidade dos efeitos. Se a causa das enchentes foi a chuva, o que mais está escondido sobre a tragédia? Essa questão pode ser respondida por vários fatos, mas aqui se trata de perguntar sobre qual o papel do determinismo dos meteorologistas frente a indeterminação do tempo. Os debates sobre aquecimento global levam a uma valorização maior das previsões meteorológicas, mas e se estivermos numa era em que até divulgar a previsão do tempo for algo de risco e objeto de poder? Taddei cita o fato que lhe ocorreu em Fortaleza, no ano de 2004, num congresso de meteorologia quando “em razão da importância social e econômica do que seria produzido no evento e também da presença dos visitantes estrangeiros, a reunião foi aberta pelo então secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Ceará. Em sua fala de abertura, o secretário chocou a todos ao dizer que, em sua opinião, as previsões climáticas não deveriam ser divulgadas à sociedade. Ainda que tal opinião fosse radicalmente de encontro ao objetivo daquele evento – e, mais ainda, à forma como grande parte daqueles cientistas entende o valor do seu trabalho e esforço profissional – não houve qualquer manifestação verbal explícita oposta. O argumento do político era bastante claro: a disseminação de uma previsão climática gera expectativas sociais que, se não materializadas, muito facilmente podem se transformar”. Não é assim por todo lugar, nossos comentaristas divulgam suas previsões de tempo mas podemos observar sua reticência, seu discurso contido, como se se policiassem para não falar demais. Nossos políticos não agiram exatamente assim, como se não soubessem ou não quisessem saber das notícias, das previsões que apontavam para o mês de maio uma grande quantidade de chuva? Mas a quem cabe arcar com as consequências das previsões e seus desdobramentos? Aos meteorologistas, no caso de erro; aos políticos, no caso de omissão. Segundo o autor, a meteorologia é uma ciência com autonomia, mas está batendo fundo no coração da política o desejo de evitar a divulgação de suas previsões, pois traz “vulnerabilidade política”. Ora, no Rio Grande do Sul o tiro saiu pela culatra, os governantes não escutaram as previsões, desvencilharam-se delas “não era minha agenda”, disse o governador Eduardo Leite, mas sofreram consequências, mas como os meteorologistas do congresso que não deram bola para o político e divulgaram dias depois as suas conclusões, nossos técnicos continuaram afirmando que o pior poderia ainda vir. Aqui, o governo atual arca com o prejuízo de os ter desconsiderado.
O clima passou a ser um termo a ser considerado na política neoliberal. Se você fala que vai ter muitas chuvas, as pessoas deixam de ir para o litoral ou serra e com isso os comerciantes sentem prejuízos. Com a enchente, ficou pior. É nítida a diferença da informação nos veículos de comunicação. Enquanto que o Jornal da RBS, em 12.6, informava que a chuva retornaria por três dias e depois acalmaria, o Jornal Nacional do mesmo dia ampliava o tempo e dizia que depois da alguns dias de calmaria, na semana seguinte a chuva retornaria com intensidade, para pânico dos gaúchos. Na quinta-feira, dia 13.6, o Jornal do Almoço convidava a todos a visitarem Nova Petrópolis no final de semana para participarem da TricoFest, festival da malha tricô produzida na região, mesmo quando havia sido previsto um clima ruim. É que é ruim para os negócios falar de chuvas numa hora dessas. Até uma edição especial do JÁ foi transmitida de lá. Aqui a seleção importa, o corte é sempre ideológico, deve-se omitir, clima é algo perigoso para o mercado. Por isso os detalhes de seu discurso importam: silêncios, omissões, reduções, tudo mostra que falar do clima possui uma notável riqueza polissêmica: para uns é chuva geral, para outros, é “só localizada”; para uns implica em retorno da ação de retirada de moradores, como em Canoas, para outros, como o Prefeito de Porto Alegre, não exige retirada de moradores. Ninguém quer repetir as sensações da tragédia.
O clima como discurso
Então há o clima e seu relato. O relato do clima é algo que se compõe por pessoas e grupos distintos em contextos diversos e sucessivas camadas. Pensamos que apenas os climatologistas nos informam sobre ele, mas de fato há uma hierarquia de interferências que se segue a eles, passam pelos comunicadores dos meios de comunicação que resumem e selecionam suas informações, pela influência que exercem os detentores do poder destes veículos sobre eles em suas redações, pois eles também são patrocinados por redes de comerciantes que tem interesse no clima favorável ao seu comércio e vai das entidades locais que apontam nossas possibilidades e limites às internacionais que fazem o debate sobre mudanças climáticas.
Taddei afirma que o que vemos na mídia opera transformações significativas no conceito cientifico de clima “o que vemos na mídia – em veículos como o The New York Times, The Guardian, The Washington Post, BBC, Le Monde, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo – é, em geral, a apresentação da existência de um fato da realidade (física), evidenciada pelo acúmulo de descrições e medições de tal realidade na forma de relatórios científicos, elaborados por pessoas com autoridade reconhecida para fazê-lo. Ironicamente, existe aí um imenso esforço discursivo no sentido de estabilizar semanticamente o mesmo clima que está em transformação física. E tal esforço discursivo é tanto mais eficaz quanto maior sua invisibilidade. Como resultado, o clima passa a ser entendido de forma objetificada, como um componente do mundo, e perde-se a percepção de que ele é, do ponto de vista da ciência, um conjunto de padrões estatísticos complexos e dinâmicos, tão impalpáveis como importantes, construídos por meio da conjunção do produto de sensores, padrões de referência, equipamentos de processamento de dados, modelos matemáticos, treinamento técnico sofisticado e muita dedicação dos profissionais envolvidos. Por serem intangíveis, tais padrões necessitam de ferramentas de comunicação que lhes deem visibilidade”. Nesse ponto, o autor afirma que esses aparatos de representação gráfica não são inertes nem transparentes “mas transformam e subvertem as informações, as relações e os atores sociais envolvidos com o seu uso. Como se dão tais transformações, em contextos específicos, é um primeiro elemento digno de interesse na construção de uma antropologia do clima.”
Um autor importante para Taddei caracterizar esse desvelamento da verdade do discurso cientifico é Pierre Bourdieu, do qual O Poder Simbólico inspira o autor. Entretanto, entendo que é sua obra Homo Academicus (Siglo XXI, 2008), que melhor enquadramento faz para entender o universo dos meteorologistas, já que, ao fazer a crítica do universo universitário francês ao analisar seu próprio grupo de professores, a obra sugere, para o entendimento do campo da ciência meteorológica, diversos insights. Afinal, meteorologistas também tem sua formação marcada pelas leis do meio, e portanto, tem sua sociologia. No rio Grande do Sul, duas universidade formam metereologistas: a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Em seu pensamento, a universidade que forma meteorólogos estabelece, nesse sentido, um “conjunto de relações objetivas entre as várias posições e disciplinas resultantes da distribuição desta espécie de capital, lugar da luta constante destinada a alterar sua estrutura”. Bourdieu quer assim apontar que a dinâmica do poder começa lá no próprio universo de formação desses profissionais, onde “poder acadêmico e prestígio intelectual são, ao mesmo tempo, armas e objeto na luta acadêmica de todos contra todos”. Primeiro, é a luta do estudante para sobreviver e ser reconhecido em seu meio como técnico onde as regras são cruéis; segundo, é a luta entre meteorologistas, preocupados com os efeitos imediatos do clima e os climatologistas, preocupados com seus efeitos de médio e longo prazo. Terceiro, é a própria luta entre eles e o negacionismo, que consiste em pôr em prática estratégias para negar, mitigar e suspeitar das descobertas meteorológicas e climáticas para justificar projetos e ações neoliberais e que se transformou recentemente num elemento da psicologia coletiva de grupos reacionários. É que, segundo o autor, atuar sobre o clima se transformou na “estratégia de grupos para lidar com o que Steve Rayner (2012) chamou de “conhecimento desconfortável”.
O clima como lugar de disputa
Taddei aponta que, nesse contexto de luta de discursos sobre o tempo, uma série de ativistas do clima surge nesse cenário, como os próprios povos indígenas, cujas lideranças também começam a falar sobre e envolver-se no ativismo climático internacional, de como seus antepassados agem sobre a atmosfera e suas crenças de mitigação das mudanças climáticas, como segundo o autor, fez o líder ianomâmi Davi Kopenawa, afirmasse “em apresentação no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2011, que o que os “brancos” e seus equipamentos são capazes de perceber e registrar, no que diz respeito às mudanças climáticas, é apenas o que os xamãs amazônicos não foram capazes de mitigar (Kopenawa, 2011)”. O campo do significado e diagnóstico do clima é pluricultural, envolve não apenas o discurso dos cientistas, mas também o discurso dos povos indígenas, as visões sobre o tempo das populações quilombolas, caiçaras, caipiras, sertanejas – e aqui incluímos os políticos – que, completa Taddei “em geral, não se conformam aos pré-requisitos conceituais impostos pelas ciências do clima, como a ideia de que a atmosfera é composta apenas de elementos químicos e é, portanto, destituída de vida e intencionalidade.” Nessas visões do clima, a sua dimensão material é apenas uma parte de um campo maior que envolve formas dinâmicas, variáveis, performances, uma existência sociocultural e necessidades do poder que são, segundo o autor, “as relações nas quais a atmosfera é protagonista”. Essa diversidade de apropriações e interpretações são regra geral recusadas pelos cientistas do clima, mas eles também são as forças que abrem o campo da ciência do clima para a incerteza e a indeterminação com as quais eles têm de trabalhar também.
Para Taddei o problema é que cada um interpreta o clima a sua maneira. No jornal da RBS, um morador do bairro Sarandi em Porto Alegre mostra-se preocupado com as chuvas previstas para o final de semana, dia 16.5, pois ainda há muito de lixo nas ruas “olha, vai ser complicado, vai entupir os bueiros, mas a chuva não vai ser como da outra vez não”, diz o morador aposentado. O cidadão apropria-se da previsão de tempo dos cientistas e a reelabora com base em sua experiência, transformando-se ele mesmo em um meteorologista particular e, diz o autor “eles parecem ser mais conscientes do que cientistas de outros campos das ciências sobre os efeitos dos níveis de incerteza que seus modelos trazem embutidos na forma como sua ciência se relaciona com a realidade”. Se pensamos que, em parte, as autoridades políticas também fazem suas avaliações e previsões, estamos aceitando para as ações de cautela que o governo deve realizar e previsão um nível bastante elevado de incerteza frente as necessidades dos cidadãos de informação do clima. Foi o que aconteceu quando o Prefeito de Porto Alegre mandou colocar o lixo na rua sem imaginar que as águas da chuva poderiam resultar em novos problemas, como o entupimento do sistema de drenagem, o que aconteceu. O clima já não obedece aos cientistas, imagine ao povo e aos governantes de plantão. Querer que climatologistas e autoridades apontem um grau de certeza do que dificilmente pode ser, torna o clima uma verdade inconveniente. Quando se vê na Rádio Gaúcha, o jornalista Paulo Germano falar de forma hesitante sobre as previsões, cheios de melindres “vai chover, mas não tanto”, etc, é disso que se trata: de mediação da informação climática para atender as necessidades de não gerar pânico, não provocar transtorno. Mas eles podem acontecer.
Prever o tempo não é, portanto, algo neutro. Está sob efeito de forças sociais e fluxos de comunicação. Ele coloca em confronto o pensamento cientifico de cientistas, e indutivo das populações, estratégico de projetos de poder que estabelece formas de apresentar dados de indicadores matemáticos e os transforma em comunicação jornalística inteligível para a sociedade. Ele cria o que o autor chama de “arenas de competição retórica” que, nos termos de Taddei, são os “processos de manipulação estratégica da opinião pública nos momentos de estancamento dos processos avaliativos – e a consequente produção da percepção de satisfação com relação aos graus de incerteza envolvidos, o que recorrentemente ganha o nome de “certeza” – para possibilitar determinadas formas de ação no mundo.”
Nos termos de Pierre Bourdieu, a previsão do tempo é um campo social e seus atores fazem parte de um jogo que tem regras próprias. O clima acontece sobre a realidade, sobre territórios físicos e simbólicos. Uma devastação atingiu o Rio Grande do Sul, onde em seu imaginário, o gaúcho, é um forte. O clima produziu uma realidade às avessas do que seu povo se representa, daí campanhas de ZH como “Levanta Rio Grande”, o retorno a um otimismo de que é possível ser o mesmo após a destruição. Essa regra foi quebrada. Não se pode. Cidades terão de ser mudadas de lugar, populações iram se fragmentar, amizades e relações de convívio irão desaparecer. O clima afeta a todos e só podemos, para atender a nossos mecanismos de proteção do ego, tentar minimizar seus efeitos e lutar pela esperança de sobrevivência. A tragédia faz nascer um novo estado gaúcho, uma nova capital. Mas como ela é?
Manipulação e democracia ambiental
Para começar, nesse novo estado, continuará exercendo poder o projeto neoliberal? Qual a relação dos meteorologistas com o poder hegemônico? O poder público é sensível ao sacrifício público, afinal, em caso de tragédia como a que vimos, é culpado pelos cidadãos, as vezes com humor, como nos memes em que vemos o prefeito Sebastião Melo afundando nas águas e que foram pichados junto a Praça Argentina, em Porto Alegre, ao contrário das autoridades climáticas – não consegui localizar piadas ou memes em relação a Cleo Kuhn, uma das mais respeitadas da área. Nesse mundo, cada cidadão assume o papel de profeta da chuva, como os pequenos agricultores do sertão, que aprenderam a ler os sinais do clima e elaborar previsões ao morador vítima da enchente no Sarandi. Isso se repete quando nossas autoridades dizem, frente a próxima chuva, que “o cidadão já conhece como se comporta a cheia em sua casa, então fica a seu critério”, como se estivessem lavando as mãos de eventuais responsabilidades com o saber climático e com a proteção de cada cidadão. Quer dizer, atores políticos de estado mantém formas alternativas de gestão climática “de modo a manter essa forma popular e alternativa de conhecimento climático sob (relativo) controle – ou seja, organizando a arena discursiva de forma que outras formas de conhecimento climático não ganhem reconhecimento político, inviabilizando, assim, a possibilidade do estabelecimento de uma democracia ambiental que seja também epistemológica e ontológica” diz Taddei. Se os políticos que tem a função de nos proteger ignoram as previsões climáticas, é prova de que lutam para assumir a hegemonia nas previsões para o menor custo possível para o capital.
A catástrofe climática foi construída como entidade política. A negação dos avisos, a desresponsabilização e o discurso de não procurar culpados manifesta o interesse de uma ausência, a da responsabilidade da omissão dos culpados pela tragedia com a cidade. A enchente é produto da ausência de prevenção também, e não apenas da existência de acidentes climáticos como inundações, um desastre natural. Há culpados e por isso que o clima precisa ser manipulado. Que a ausência de preocupação com desastres é apenas outra forma de expressão neoliberal, onde o estado é reduzido em suas funções de proteção, sugere como o tema dos desastres é item obrigatório na construção de políticas públicas. Mas se até agora, o próprio cidadão não exige que a prevenção integre planos de governo, significa que, a partir da catástrofe é preciso entender as formas de percepção e gramáticas emocionais envolvidas na visão que o tempo não apenas sobre o ambiente, mas também sobre a previsão de tempo que nos chega pelos meteorologistas. O neoliberalismo, até agora, só foi responsável por políticas dessensibilizantes frente as consequências do clima, a sua previsão não é um lugar de reflexão e, nos termos do autor, inaugura-se a “banalidade do mal ambiental”, numa apropriação de Hannah Arendt “o que tenho a dizer sobre a meteorologia é apenas que a ausência de treinamento em comunicação social e relações públicas na formação do meteorologista produz toda sorte de infelicidade quando ele se torna gestor de agência meteorológica – coisa que inevitavelmente ocorrerá com um número considerável de profissionais –, uma vez que os meandros e as armadilhas da relação com jornalistas e políticos são aprendidos com muito custo e na base da tentativa e erro”. Se continuarmos vendo a meteorologia e seus atores sem considerar especificidades socioculturais da população e os projetos de desmonte do Estado, se não houver um diálogo entre populações atingidas e seus governantes, se áreas e instituições como NPH da UFRGS não participarem dos processos de gestão pública, não conseguiremos atingir o núcleo da previsão climática, a da sua relação com as dinâmicas sociais.
Em um processo de recuperação da catástrofe das cheias, o modo como as populações vivem o clima é parte fundamental de uma reeducação climática. Assim, a enchente foi o acontecimento que permite ver com mais clareza como se relacionam clima com agendas e interesses distintos. O clima media o mundo social. Faz interagir atores ao redor de previsões climáticas, insere a local no debate político global contemporâneo das mudanças climática.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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