A miséria humana está exposta nas ruas. Basta uma volta na quadra e um olhar ao redor para a realidade se impor cruel. Pobreza extrema. Indigência que degrada, humilha, dói no corpo e na alma. Enlouquece. Mães com crianças no colo sentadas na calçada. Crianças soltas pedindo algo para comer ou vendendo balas. Homens atirados no chão dormindo. Outros puxando carroças e vasculhando lixos em busca do que é possível reciclar. Alguns andando a esmo, desnorteados. Tem de tudo neste triste cenário. Assim nos defrontamos também com a violência que avança e destrói como podemos ver no impactante primeiro mês de 2023. Um janeiro turbulento e agressivo que chegou ao fim deixando rastros contaminados de horror, o que certamente vai ficar para a história. E assim é também em relação aos que vivem à margem e são penalizadas por não corresponderem ao padrão social idealizado/autorizado.
É o que acontece cotidianamente no Brasil, do Oiapoque ao Chuí
Mas quem não usa transporte público, não enfrenta filas nos pontos de ônibus depois de um dia intenso de trabalho, não precisa de centros de saúde populares para consultar ou marcar um exame, não trabalha de sol a sol para sustentar a família, não tem filhos em escolas públicas, hoje tão abandonadas, e não passa pelo centro nevrálgico das cidades, não vê o cotidiano difícil de milhares de brasileiros. E talvez nem queira ver! Velhice maltratada, crianças abandonadas, paradas entupidas de gente e ônibus abarrotados, roubos, assaltos, polícia que agride quando deveria cuidar da segurança das comunidades – descaso generalizado. Mas aí vem o velho discurso da meritocracia, “vence quem se dedicou e se esforçou o suficiente”, como se todos partissem do mesmo ponto, com as mesmas condições físicas, sociais, emocionais e intelectuais, tão significativas na trajetória de cada um. Durma-se com um barulho desses!
Por isso, insisto, é necessário refletir sobre os meandros, as dobras e os descaminhos assinalados por esses tempos sombrios que enlaçam tantos destinos. Interrogar-se sobre as diferenças, o preconceito, o excesso e a falta, a miséria que cresce assustadoramente ao lado da opulência soberba que reina absoluta. A humildade e a prepotência. Precisamos olhar para os vazios e os acúmulos deste cenário desolador, questionar as generalizações e as promessas vãs, repudiar a destruição de patrimônios públicos, desacomodar as certezas.
O mundo está desregulado ou é a minha sensibilidade que está exacerbada?
“Se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”, diz uma linda canção
Na rua faço apenas o que é urgente neste verão tórrido e volto para casa. Trabalho, olho televisão, converso, faço tarefas cotidianas, me cerco de livros, vou lendo e aprendendo, ouço música, falo com os amigos. E aí, mais uma vez, a canção “Se meu mundo cair” de José Miguel Wisnik, músico, compositor e ensaísta, professor de Literatura, mestre, doutor, um artista brasileiro que admiro muito, me sacode: “Se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar”. Uma canção que responde aos tantos questionamentos que ando fazendo e que me remete para outra canção, esta de 1958, “Meu mundo caiu”, de Maysa Matarazzo. OK! Faz tempo que o mundo anda assim!
Há que se levantar cotidianamente, mas não dá para normalizar a miséria e o descaso. Até porque quem vive discursando e legislando, quase sempre em causa própria, mergulhado no “favorzinho” – uma propina aqui, outra lá adiante – usando e abusando do dinheiro público que deveria estar na educação, na saúde e em ações sociais, segue impávido, sem olhos para o povo.
Mas tenho esperança, sim! E minha esperança está nas luzes que esses tempos exacerbados acenderam. Vejo muita gente lutando pelo bem comum. Nosso trabalho e nossa crença na possibilidade de um mundo justo estão em pé. Não estamos anestesiados. Descontinuamos caminhos que já não serviam e abrimos outros horizontes. É necessário, agora, dar adeus ao demasiado. Buscar o necessário. Sair do tempo-máquina, do tempo-automação e entrar no tempo-humano. Partir para a reinvenção, para o desenho de outra geografia. Criar novas utopias.
Para onde ir? Por quê? A utopia nos permite sonhar, fazer algo na contracorrente. Caminhar com olhos de ver. Abrir buracos no cotidiano, furos no futuro como escreveu o psicanalista Edson Luiz André de Souza na página 57 do livro Furos no Futuro, psicanálise e utopia – “Perto demais não vemos. Longe demais também não. Estamos sempre fora do eixo. Mas é deste mal-estar, no tempo e no espaço, que vamos tentando acordar melhor e sabendo que, para isto, é de nossos sonhos utópicos que precisamos cuidar” (2022, Artes&Ecos).
Diversidade, respeito pelo meio ambiente e pela condição humana – Esses são os luxos do futuro.
Vivo me perguntando o porquê de tamanha velocidade, se no caminho há tanto para observar, absorver, aprender, fazer. Precisamos combater com veemência o preconceito, a miséria, a fome, os assassinatos absurdos de negros, pobres, homossexuais e mulheres que, pelas estatísticas, cresceram muito nos últimos anos. Diversidade, respeito pelo meio ambiente e pela condição humana são os luxos do futuro. Harmonia, diálogo e convivência solidária. A gente só é o que a gente é a partir do outro.