Seu corpo frio jaz em sarcófago de bronze, corpo que nunca se tornará pó: o pó negro já a acompanha no ataúde. A Morta é muitas, são 50 numa caixa pequena. Corpo pequeno e rechonchudo. Nasceu para ganhar a vida martelada numa culatra. Parece viva quando voa do cano em disparada: rodopiando, rodopiando, rodopiando como um pião alado.
Contanto que a deixem voar, não se importa nem de onde saia, nem quem lhe martele: nasceu para voar o voo que penetra seu corpo rechonchudo e frio no destino apontado.
Num certo dia, a martelada forte lhe precipita ao voo lá pelo fim da manhã. Saída em disparada, o que ela mais quer é que seu destino seja ilustre: desejo de tudo que é vivo. Assim, rodopiando cheia de movimento, esparramada, encontra seu destino. Pensara que fosse nobre o fim desta sua jornada. Pois, um pouco antes da chegada, vê-se o que lhe parecia ser um bicho-fera. Contudo, o estatelar de seu corpinho varou coisa também morta. Não era um bicho-fera aquilo que se via: era a imagem de um jacaré. Se não fosse tão precipitada, deveria ter desconfiado: jacaré não é azul. Mas, agora era tarde… Que lhe fique o consolo de ter atravessado a cabeça do bicho. Pois, quem martela seu voo sabe bem para onde aponta o cano: se acertasse o nome “Esso” ou “Querosene”, não seria o olho esperto que miraria certeiro um destino de valor.
Noutro dia, para ser exato, noutra noite alta, desliza silenciosa e ligeira para dentro da culatra. À noite, o silêncio e a concentração daquele de olho esperto e indicador sereno diziam para ela que, dessa vez, o alvo daria sentido à sua vida morta. Dizia para ela que seu corpo morto descansaria na vida que tirasse. Assim, animada, atira-se ao seu fim, numa carreira tão veloz quanto o ruído que, junto com ela, corta o silêncio da noite. Ancha, atravessa, inicialmente, pele e gordura; ainda forte e acelerada, rasga músculos e fratura ossos; achatada, é banhada pelo sangue que, junto consigo, inunda o pulmão que antes soprava vida. E assim, satisfeita, encerra sua sina. Contudo, a escuridão da noite e sua pressa não a fizeram perceber que, a despeito de coisa viva, sua vida poderia ter tido alvo melhor: era apenas uma paca. Bicho pequeno e de pouca carne. Porém, ágil e corredor: alvo difícil, só abatido por quem de olho sereno e indicador esperto.
Para o mais ilustre dos destinos, a distância do voo é conforme o tamanho do cano que abre o espaço. Se for ferramenta de cano curto, o rodopiar é pouco preciso, daí, para um voar certeiro, a melhor medida é sete passos: pistola Beretta, pistola Luger. Se a ferramenta for de cano longo, a distância dos passos é de sete vezes sete.
Dessa vez, a morta desliza para o lugar de seu impulso na boquinha da noite. A martelada precipita-se de cano longo, anunciando jornada extensa. Rodopia precisa até pele seca, gordura pouca, osso magro. Por conta disso, antes de chegar ao descanso, já se lamenta seu fado: alvo nobre não teria sua vida… Ao chegar, instantaneamente, esparrama-se em coisa magra. Já estava dando por conta sua vida de pouco sentido… Contudo, aplacada a pressa da voada e serenada pelas últimas cadências do músculo do órgão daquela magreza, se dá conta do valor do seu destino. Desta vez, não era coisa morta nem bicho pouco: era um homem que lutava por seu direito à terra, era o seu coração que, vivo, batia esperanças.
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Foto da Capa: Gerada por IA