A morte do Direito do Trabalho, embora sua variável de homicídio seja bem evidente, tem um quê de suicídio. A falência deste ramo do Direito tem suas contribuições relevantes daqueles que compõem o Poder Judiciário, nele incluso o trabalhista. Como qualquer instituição, a justiça brasileira sofre suas contradições e conflitos. O modelo de recrutamento, e não se faz nenhum juízo crítico do processo e sim do resultado, finda pela seleção, em sua esmagadora maioria, de pessoas oriundas das classes médias superiores de nosso país. Em resumo, pessoas com hábitos e costumes completamente desconectados da vivência da maior parte de nosso povo. Não é raro ouvirmos juízes e juízas do trabalho fazerem cerrada campanha contra os direitos dos trabalhadores. Nada mais justo, porque aqueles, nas suas existências concretas no Brasil, se vinculam muito mais às classes dominantes que às dominadas.
Cabe à magistratura “interpretar o Direito”. O entendimento do que vem a ser essa atividade é muito simples: as palavras e as coisas não têm sentido unívoco. Ao ouvirmos ou lermos uma palavra, ela nos chega cheia de significados. Uma manga pode entrar pela boca ou engolir um braço. Quando um advogado diz na “cara” de um juiz que ele é “incompetente”, seu cliente verá nisso um ato de coragem e a autoridade julgadora perceberá apenas uma palavra que quer dizer “a impossibilidade de falar naquele processo porque a lei o impede”. Para um, ofensa ousada. Para o outro, qualificação técnica.
Se interpretar fosse uma coisa simples, não teríamos tanta dissensão na aplicação das normas aos fatos. Como diria o professor José Geraldo, citando Octavio Paz, “às vezes nos falta cognição para representar cerebralmente um determinado fenômeno ou ideia”. Na maior parte das vezes, nós, aplicadores do direito, falamos a mesma língua. Numa outra porção, falta-nos um léxico comum porque alguns magistrados são mais CPF e outros CNPJ e simplesmente não se entendem ou não o desejam.
Por óbvio que, sendo uma ciência, o Direito nos fornece um conjunto de técnicas para superarmos essa nossa tendência ao desentendimento. Um dos instrumentos são os chamados princípios jurídicos que, sinteticamente, nada mais são que balizadores da interpretação. Exemplifiquemos para nos conduzirmos ao final. O princípio axiológico do Direito do Trabalho, existente por quase cem anos no Mundo Ocidental, nos diz que deverá ser aplicada ao caso concreto a norma mais benéfica ao empregado. No Direito Comum, o critério é hierárquico, ou seja, a que se situa na escala mais elevada da pirâmide jurídica. Na prática, isso funciona assim: se um fato está normatizado na lei e na Constituição Federal, se a condição mais benéfica estiver na lei, esta será aplicada no Direito do Trabalho. No Direito Comum, a regra constitucional regerá a relação jurídica independentemente de seu conteúdo.
Atualmente, esse e tantos outros Princípios do Direito do Trabalho estão sendo desprezados. Citemos o caso do FGTS. A Lei nº 8.036/1990 diz que a prescrição, o direito de pedir depósitos desses valores, é de trinta anos e a Constituição Federal prevê o prazo prescricional geral para reivindicar direitos dos trabalhadores em dois anos após a ruptura do contrato de trabalho em relação aos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação. A aplicação da norma legal vigeu entre nós até que o STF passou a dizer que este prazo, de trinta anos, era inconstitucional e que deveria ser aplicado o de cinco anos. Não é apenas uma dança de números, e sim um princípio centenário que foi pelo ralo e, com ele, uma regra de interpretação. Aberta a porteira, onde passa um boi, já passou a boiada e não citamos mais exemplos para não cansarmos a audiência.
Fábio André de Farias é desembargador corregedor do Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região (PE).
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Foto da Capa: José Cruz / Agência Brasil