Nem sei direito por onde começar o texto desta semana. Será mais um pot-pourri de assuntos incômodos, diga-se de passagem, mas que nunca deixam de ser pauta. Dia após dia, ano após ano, aqui, acolá, em todos os lugares. Vamos lá então.
Espanha
Mal se virou a página do tal beijo roubado do Rubiales “bem intencionado”, segundo alguns, e novamente da Espanha surge outra cena explícita de desrespeito contra uma mulher. Uma jovem jornalista estava ao vivo nas ruas Madri quando foi apalpada. Um homem passava pelo local e quis saber para qual canal de televisão era a reportagem. Se aproximou da moça, interrompeu o trabalho dela, fez a pergunta “tão urgente” e passou a mão na bunda da repórter. Simples assim! Espero que não cause espanto a minha decisão de escrever bunda ao invés de nádegas. O desrespeito não está na minha escrita. O desrespeito mora no ato de covardia. A jovem, assustada e fragilizada, chegou a pedir desculpas aos telespectadores, como se fosse ela a responsável pelo que acabara de acontecer. Ainda bem que do outro lado havia um homem de verdade. O âncora do jornal tomou a palavra, abriu a discussão ao vivo e encorajou a jovem a enfrentar o rapaz. O apalpador de bundas foi preso em frente às câmeras.
Portugal
Tem também outro episódio recente, cujo protagonista se chama Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal. Ele estava em visita oficial no Canadá e cruzou com duas Marias, mães e filha, emigrantes portuguesas. Elas aguardavam na rua, junto com várias outras pessoas para ver o representante do país de origem. Eis que o Sr. Marcelo olha para as duas e diz: “A filha ainda apanha uma gripe, já viu bem, com esse decote! “. Estas foram as palavras textuais do Sr. Marcelo. O olhar e o dedo apontado, indicavam bem o que motivou a fala. É claro que pegou mal, muito mal! “Não foi um comentário sexista”, disse ele. Se tem alguém que acha inocente e engraçado comentários assim, eu não sei. Eu acho no mínimo atrevido, desnecessário e de pouquíssima classe. Ou será que deveríamos agradecer a preocupação do senhor presidente com a moçoila? Afinal decote e gripe têm uma forte correlação, concordam?
França
Vamos agora dar um salto ali para a França. Lá também teve assunto esta semana. Angelique Cauchy, uma ex-tenista, hoje com 36 anos, declarou que foi estuprada quase 400 vezes pelo treinador Andrew Geddes. Os abusos, disse ela, começaram quando tinha apenas 12 anos. Horrível? Imperdoável? Nojento? Sim, óbvio, mas pasmem: houve quem tenha feito as contas para contestar o que ela disse. Quatrocentas vezes é muito, não deve ter sido assim, alguns disseram. Foi superestimado, imaginado! Como chegou ao número? Ela contou? É verdade, li muitos destes comentários. Preocupante, pois é desta forma que o fato concreto deixa de ser foco do acontecido. A vítima passa a ser o ponto de contestação: uma mulher perturbada e exagerada.
Haiti
Ao seguirmos esta lógica doentia, exageradas também são as mulheres no Haiti. Assunto requentado, vão dizer, mas ainda bem que tem gente que insiste em mostrar, outra vez, que nada foi feito com o que se fez a estas mulheres. Passou uma reportagem aqui na TV sobre a questionável conduta dos militares durante a missão de paz da ONU entre 2004 e 2017 naquele país. Alguém se lembra da história das centenas de mulheres que foram violadas, engravidadas, abandonadas e que criam seus filhos sozinhas e em condições precárias? Alguém se lembra quem são os responsáveis por esta geração órfã de pais? Só para refrescar a memória: a violência contra estas mulheres foi praticada por soldados, funcionários civis da ONU e de toda uma organização que deveria oferecer ajuda.
…
Devo andar muito “feminista” esta semana por levantar tantos temas envolvendo mulheres, né?
Não, não é isso. Simplesmente sou mulher e não consigo passar batido, pois somos todas vítimas. Como são também minha mãe, minha irmã, minha filha, minhas tias, minhas primas e amigas. Me chocam tanto estas histórias, sejam elas individuais ou coletivas. Conhecidas ou anônimas.
Seguimos…
Irã
Sábado passado fez um ano da morte de Masha Amini, aquela jovem de 22 anos que morreu depois de ser presa por não utilizar o véu no Irã. E é lá mesmo, no Irã, que o governo acaba de lançar um novo decreto que cerceia ainda mais a liberdade das mulheres. A partir de agora, quem se recusar a usar o hijab – o tal véu – não terá direito a receber cuidados de saúde. Estão matando Masha Amini de novo, aliás, várias Mashas por dia, todos os dias.
…
Poderia ficar aqui escrevendo por horas. Assunto não falta. O que falta é espaço. O cerne é que as mulheres continuam a ser abusadas e mortas por homens diariamente.
Beijos roubados, gracejos “bem intencionados e mãos bobas”, como os exemplos citados lá no início deste texto, não podem, nem devem ser normalizados, menosprezados ou explicados. Atos assim nos fragilizam, por mais inocentes que possam parecer.
Nada do que eu disse hoje é novo. Pensei até em não escrever sobre o tema. Por ser demasiado óbvio, por muita gente já ter dito, por muitas vezes sentir que de nada adianta.
Porém, escrevo essencialmente para colocar pra fora esse sentimento ruim que mora aqui dentro. Escrevo por ainda me revoltar com o descaso, desrespeito, deboche, desfaçatez, deterioração das condições de mulheres nos quatro cantos deste planeta. Mulheres que continuam a ser ameaçadas todos os dias, a ser violadas em todas as esquinas, que são vítimas da violência doméstica, da exclusão, da subalternização, dos salários inferiores, das múltiplas proibições, da coação e do medo.
Vivemos em um mundo louco.
Eu sei, nós sabemos.
Eu sinto na pele, nós mulheres sentimos todos os dias.
Você também, sendo homem, sabe.
E se tem filhas, sabes mais.
PS: O texto já estava pronto e entregue, mas preciso gritar aqui uma última coisa: PUNHETAÇO?!?
Eu disse que vivemos em um mundo louco, mas não é só. O mundo está doente! Jovens, estudantes de medicina, em um ato coordenado de masturbação conjunta enquanto assistiam um jogo de vôlei feminino dos jogos universitários.
Não quero continuar. Não posso.
Deixo apenas a declaração de um dos rapazes.
“Tava todo mundo zoando. Não tem nada a ver com bater punheta. A ideia era mostrar o pau para a torcida rival, isso é normal em jogos de medicina. Jogo de medicina é como se fosse um outro universo. A gente sabe separar as coisas. Ninguém vai sair fazendo isso por aí”.
Sem mais…
Foto da Capa: Protestos pela morte de Masha Amini no Irã / Anistia Internacional