Dia comum de trabalho como residente no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Em dezembro do ano anterior, havia me formado. Aquela sexta, 24 de agosto de 1984, transcorria calma. No final da manhã, ao contrário do que era esperado, a temperatura começou a declinar até marcar em torno de 2 °C. Céu fechado, uma chuva fina e constante. Por volta de 3 horas da tarde, um bulício nos corredores do 6º andar. Das janelas, entre comentários de maravilhamento, podíamos apreciar os flocos de neve sobre a cidade.
Além do inusitado, há motivos para não esquecer a data. Casamento marcado para a semana seguinte, corri para o telefone público, ao lado da entrada do corredor da Ala Sul. Teria que avisar Suzel, um espetáculo precisa ser compartilhado.
Ela havia saído e, só mais tarde, pudemos, como toda a cidade e gente de mais de trinta outras, trocar impressões e versões do onde se estava e o que se fazia naqueles trinta minutos em que a neve nos visitava. No restante daquele dia, nas manchetes dos jornais na manhã seguinte e na memória de quem viveu, o fascínio persiste.
Pode parecer algo pueril, mas para quem tem a inabalável certeza de que Porto Alegre é ou já foi o centro do mundo, o fato histórico é de extrema importância. A última vez que havia acontecido, segundo algumas referências, datava de 1909. E olhe lá, tenho minhas dúvidas.
Essa eu vi. Sobre a Ramiro Barcelos, ao longo da Jerônimo de Ornelas até onde a vista podia alcançar, Santa Cecília, Bonfim, Santana. Em pontos mais altos da cidade, até pequenos bonecos de neve foram breves testemunhas do ocorrido.
Casamos naquele 31 e o tempo fez das suas, o clima também. Não nevou mais na Mui Leal e Valerosa. Qualquer hora acontece novamente, do jeito que a coisa vai. Eu tenho tentado contar histórias, às vezes ficcionais, outras desse tipo. Se ainda estás aí, pode passar no guichê dos prêmios que lá estará um cartão de agradecimento pela generosa paciência.
Fio-me que mesmo quem é mais jovem acreditará no atípico evento climático e há provas publicadas. Difícil será explicar a existência daquele telefone; não era exatamente um “orelhão”, porque desprovido do colorido pavilhão auricular que foi mote para o seu batismo. Melhor nem falar da fila que se formou, cada qual com a sua “fichinha”. – É, gurizada, uma ficha! Tinha aspecto de uma moeda, com um sulco em cara e coroa. Era o alimento daqueles aparelhos.
Suponho que o prezado leitor ou leitora esteja lendo essa crônica em seu celular. Inimaginável, a não ser em alentada fantasia, tal proeza há quatro décadas.
Muita coisa mudou, inclusive para a necessidade de alertar alguém que cai neve em Porto Alegre. A inteligência artificial conseguirá imagens convincentes e, seguindo a tendência dos fakeísmos, muitos acreditarão. Os mesmos que negam qualquer preocupação na beleza do pôr do sol dessas semanas. Caprichosa maquiagem de fumaça, efeito das queimadas de distâncias amazônicas.
O que não mudou foi a vontade de compartilhar momentos de estranhamento como esses com aqueles que temos em afeto e parceria.
No caso da minha noiva, também não mudou a dificuldade de fazer com que ela me atenda ao telefone, geralmente está no “silencioso”, cai na “caixa de mensagens”, no fundo da bolsa ou em algum canto da casa.
Mas, afinal, estamos há quarenta anos juntos, o que, convenhamos, é tão improvável quanto nevar em Porto Alegre. Ou fazer alguém acreditar que já dependemos de uma fichinha de metal e de enfrentar filas para falar ao telefone.
Foto da Capa: Freepik
Mais textos de Fernando Neubarth: Clique aqui.