Em julgamento realizado no final de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é obrigatória a implementação do juiz das garantias, e fixou o prazo de 12 (doze) meses, prorrogáveis por mais 12 (doze) meses, contados da data da publicação da ata do julgamento, para que as leis e regulamentos dos tribunais sejam alterados de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visando a implementação do juiz das garantias.
A este passo, cumpre esclarecer que como o juiz das garantias algo novo no ordenamento jurídico brasileiro, foi instituído pela Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, o famoso “Pacote Anticrime”, durante o governo Bolsonaro, a constitucionalidade de vários dispositivos referentes à instituição do juiz das garantias acabou sendo discutida no Supremo Tribunal Federal (STF), que, em síntese, decidiu que tais regras são constitucionais, que cabia ao Congresso Nacional legislar a respeito, visando a imparcialidade na persecução penal.
O juiz das garantias terá sua atuação limitada a fase da investigação criminal (inquérito policial) e será o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais dos investigados. Uma vez oferecida denúncia, ou seja, que tenha sido formalizada a acusação contra o suposto autor do crime, a competência para seguir com o processo penal será a do juiz da instrução.
Após o julgamento, o entendimento da referida lei foi modificado em algumas partes, e o STF determinou que mesmo que o Pacote Anticrime estabeleça que “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória das partes”, o juiz poderá, em alguns casos, respeitando os limites legais, determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para julgamento do mérito. Essa foi uma grande modificação no Pacote Anticrime e ocorreu em detrimento dos investigados, obviamente.
De acordo com o Pacote Anticrime e agora com o entendimento do STF, pode-se dizer que compete especialmente ao juiz das garantias:
(i) a comunicação imediata da prisão;
(ii) receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão;
(iii) zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;
(iv) ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal, e também dos procedimentos investigatórios conduzidos pelo MP;
(v) decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar;
(vi) prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório que ocorrerá, de preferência, em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;
(vii) decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral, sendo que se houver risco para o processo o juiz poderá deixar de realizar a audiência, ou transferir sua data em caso de necessidade;
(viii) prorrogar o prazo de duração do inquérito ou do procedimento investigatório que estiver sendo conduzido pelo MP, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial ou pelo MP;
(ix) determinar o trancamento do inquérito policial ou do procedimento investigatório que estiver sendo conduzido pelo MP quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;
(x) requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;
(xi) decidir sobre os requerimentos de:
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;
c) busca e apreensão domiciliar;
d) acesso a informações sigilosas;
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;
(xii) julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;
(xiii) determinar a instauração de incidente de insanidade mental;
(xiv) decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;
(xv) assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;
(xvi) – deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;
(xvii) – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;
(vxiii) outras matérias inerentes às suas atribuições.
Importante salientar que, exceto na hipótese de ser impossível, o preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído. Excepcionalmente será possível a utilização de videoconferência.
De acordo com a redação original do Pacote Anticrime, se o investigado estivesse preso, o juiz das garantias poderia, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não tivesse sido concluída, a prisão seria imediatamente relaxada. Todavia, de acordo com o STF, se houver uma decisão fundamentada do juiz reconhecendo a necessidade de novas prorrogações, em razão de elementos concretos e da complexidade da investigação, não haverá mais a revogação automática da prisão preventiva. Evidentemente, isso não será nada bom para aqueles que têm problemas com a justiça e, na minha opinião, essa alteração foi a mais importante, pois permitirá que os investigados sejam detidos por mais tempo, não possam agir em liberdade para apagar provas, e escaparem da justiça de alguma forma. Com essa alteração, o bondoso Pacote Anticrime ficou bem mais eficaz sob o ponto de vista da investigação criminal.
Originalmente, a competência do juiz das garantias abrangia todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessaria com o recebimento da denúncia ou queixa. Com o entendimento do STF também estão fora competência do juiz das garantias, as infrações submetidas ao procedimento de competência originária da Lei 8.038/90, as infrações dos processos de competência do Tribunal do Juri e as infrações referentes aos casos de violência domestica e familiar. Também ficou mais difícil o arquivamento de um inquérito policial, pois se a autoridade judicial competente verificar ilegalidade ou teratologia, poderá requerer a revisão da decisão pelo órgão ministerial.
Uma das regras que se debateu, e foi mantida, foi a de que as autoridades penais estão proibidas de fazer acordos com órgão de imprensa para a divulgação de operações. Os ministros do STF entenderam que a divulgação de informações sobre prisões e a identidade do preso devem respeitar o disposto na Constituição Federal (CF), sejam realizadas pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público (MP) ou pelo judiciário.
O STF também determinou que a investidura do juiz das garantias deve ser de acordo com as normas de organização judiciária de cada esfera da justiça.
Felizmente, foram declaradas constitucionais os artigos que determinam que se o juiz considerar insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de persecução penal, devolverá os autos ao MP para que seja reformulada a proposta de acordo em concordância do investigado e seu defensor, e que o juiz poderá recusar a homologação de proposta que não atender aos requisitos legais.
Espero que com essa atenuada na bondade do antigo Pacote Anticrime, pelo STF, os grandes criminosos mereçam o que a lei, em tese, reserva para todos que cometerem atos ilícitos, e que com a implantação do juiz das garantias os pobres não fiquem tanto tempo na cadeia quando houver alguma ilegalidade nas suas prisões. No entanto, de forma triste concordo com a declaração do Ministro Barroso, de que “o sistema atual é duríssimo com os pobres e “extremamente manso com a criminalidade dos ricos, do colarinho branco inclusive com a apropriação privada do Estado”. Triste Brasil.
Foto da Capa: Ministro Luis Roberto Barroso – Agência Brasil