Preciso falar da discriminação enraizada que, além de escancarada nos olhares cotidianos, revela-se nas definições de dicionários, na fala e na escrita, através das definições e do uso pejorativo de algumas palavras, como anão. Sei que muitas vezes radicalizo nas minhas posições e críticas, mas é necessário contrapor-se ao que nos constrange e pode nos afastar do convívio social.
Sob o ponto de vista ético e humanista é desolador perceber que a palavra anão ainda é muito usada para adjetivar situações que envolvem o grotesco, o indigno, o corrupto, o engraçado, o que é pouco e provoca o riso fácil. Vejamos uma explicação que encontrei em um dicionário do Google: “Significado de Anão. Substantivo masculino. Aquele que, em relação à média, tem uma altura muito reduzida. Quem sofre de nanismo, pequenez anormal em relação aos demais indivíduos. [Pejorativo] Quem é muito baixo, raquítico, fraco, nanico”. Tenho a dizer que a definição é bizarra, desconhece a nossa condição e as palavras usadas, como “sofre, raquítico, fraco”, são contaminadas pela discriminação.
Esses usos indevidos já respingaram e ainda respingam muito na minha vida. E têm piores! É o caso de expressões como “O ano ou um anão?” (artigo de Flávio Tavares publicado no jornal Zero Hora no final de dezembro de 2019, referência ao ano considerado medíocre), “salário com perna de anão” (referência ao salário baixo), “anão moral” (Ciro Gomes sobre Michel Temer na época do golpe), “anão diplomático” (porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Yigal Palmor, ao reagir às críticas do Itamaraty, em julho de 2014), “anões do orçamento” (grupo de deputados envolvidos em fraudes no final dos anos 1980), ou seja, a corrupção no poder vinculada diretamente à estatura das pessoas com nanismo.
É fato que o uso preconceituoso de algumas palavras está tão entranhado no inconsciente coletivo que poucos estranham. E quem sofre são as pessoas com deficiência, negros, índígenas, grupos LGBTQi+, entre outros. Esses seres “imperfeitos” incomodam e causam constrangimento porque apontam para uma diversidade de condições e comportamentos humanos ainda não compreendidos e aceitos como deveriam ser. É fundamental contestar tais usos porque são assimilados sem críticas. São pontos de vista do senso comum que reforçam a rejeição e que as pessoas com nanismo, por exemplo, sofrem desde os tempos medievais, passando pelos regimes fascistas, quando a recomendação era que fossem eliminados.
Por mais que tenhamos rampas, calçadas adequadas, balcões mais baixos, banheiros adaptados, elevadores acessíveis – o que é maravilhoso, mas ainda quase nada – nossas vidas vão continuar frágeis se o preconceito que se desnuda sem freios na palavra não for combatido. A pior barreira é a discriminação, cada vez mais acintosa no Brasil. Discriminação que pode estar nas entrelinhas de um texto bem intencionado ou em vozes que repercutem o dito sem contestar. E assim segregam quem não corresponde ao padrão de normalidade instituído e assimilado socialmente. Segregação que está em comentários grotescos de comunicadores inescrupulosos de programas de televisão e em piadas vulgares que tumultuam as redes sociais. O que me cabe neste contexto é pedir respeito, sem medo da minha diferença e das dificuldades que vêm com ela, como diz a canção de Nelson Cavaquinho, G. Brito e A. Caminha: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”. Até porque “piadinhas ingênuas e sem maldade” também machucam.
(Foto da capa: Paratleta Camilla Feitosa Oliveira, reprodução Nanismo Brasil)