Tomar o Outro por um quadro é prova de um ato soberano do desejo por beleza que dificilmente disfarça a tirania.
Henri-Pierre Jeudy, O corpo como obra de arte
Aquilo que o mundo capitalista especifica é que o trabalhador é livre para dispor como quiser sua força de trabalho, tão livre que é obrigado a vender seu corpo para obter seu direito à vida.
Pascal Bruckner & Alain Finkielkraut, A nova desordem amorosa
A imagem correu o mundo como fogo de palha. Bianca Censori chegou à cerimônia do Grammy 2025 acompanhada de Kanye West. Ambos com roupas pretas, mas Bianca, virada de costas, começou a tirar o sobretudo e revelar que estava completamente nua na frente de todos, já que estava coberta apenas com um collant transparente. Eu não tenho dúvidas de que ali emergiu a imagem da parte obscura da extrema direita, que chegou para dizer o que pensa do sexo: o pior que um ser humano pode fazer em relação ao Outro.
Uma forma de ver a atitude de West é compará-la com o experimento da sombra térmica que circula na internet. Este é considerado um experimento assustador para demonstrar os efeitos da radiação térmica extrema, pois a reproduz em escala controlada. O fenômeno da sombra térmica ficou evidente em Hiroshima após a explosão da bomba atômica, onde objetos e pessoas que bloquearam a radiação deixaram marcas nas superfícies protegidas. O efeito é a produção da imagem fantasmagórica de um objeto que esteve ali e que lembra as vítimas da bomba que desapareceram. De certa forma, o desfile de Censori é seu equivalente social: está ali uma mulher que torna sua nudez pública, a sombra dos valores de um homem de extrema direita, que permite transformar a própria esposa em signo público de seu poder e de seu desejo sexual.
Kanye West é a versão musical da extrema direita. O que Trump é para a política, Kanye West é para o show business. A revista Rolling Stone, que é da área, descreveu o músico em longa matéria. Sua trajetória é repleta de controvérsias e declarações polêmicas. A jornalista Aline Cordaro, que assina a reportagem, afirma que ele concorria na categoria melhor música de rap por “Carnival”. A música, uma pérola poética [contém ironia], diz coisas como “vai, vai, vai, vai/O boqu@te é tão bom, ela é uma aluna exemplar/Ela rebola no meu p@u como se estivesse num carnaval“ e por aí afora. Perdeu para “Not like, Us”, do rapper Kendrick Lamar. Se deixaram o evento por conta própria ou foram expulsos, não importa, pois no show business uma imagem é tudo e West a produziu, assim como produziu outras em sua carreira.
O DNA de extrema direita
Não conheço a sua música e nem sou fã do estilo, mas pesquisando na internet descubro que KanyeWest não é um anjo. Em 2009, diz Cordaro, ele interrompeu o discurso de Taylor Swift no Video Music Awards, subindo no palco e pegando seu microfone para dizer que o vídeo de Beyoncé era o melhor de todos os tempos. Depois, em 2018, em uma entrevista ao TMZ, West declarou que os “400 anos de escravidão nos Estados Unidos parecem uma escolha”, minimizando a história da escravidão nos Estados Unidos. A declaração foi complementada com expressões como “Quando você ouve sobre a escravidão por 400 anos… Por 400 anos? Isso soa como uma escolha. É como se estivéssemos mentalmente aprisionados”, declarando ainda que “escravidão é para negros, e Holocausto para os judeus”. “A prisão é algo que nos une como uma raça, negros e brancos”.
Quatro anos depois, em 2022, perdeu contratos por uma declaração antissemita ao programa InfoWars, quando disse que “todo ser humano tem algo de valor, especialmente Hitler”. Cordaro diz que ele também afirmou que “ama os nazistas”. No mesmo ano, usou, durante a Paris Fashion Week, uma camiseta com os dizeres “White Lives Matter”, slogan de grupos supremacistas brancos. Acusou Sean “Diddy” Coen, um de seus críticos, de estar sendo controlado pelos judeus.
A própria revista Rolling Stone denunciou em 2022 o ambiente de trabalho abusivo sobre funcionários da Yeezy, uma marca de moda [voltaremos à questão adiante] que Kanye West possuía em parceria com a Adidas. Ele era acusado de exibir pornografia para os funcionários para intimidar e fazer comentários de cunho sexual em reuniões. Diz Cordaro: “Uma carta aberta enviada por ex-membros da equipe da Yeezy à diretoria da Adidas denunciou um ‘padrão doentio de comportamento predatório em relação às mulheres’ e acusou a empresa de ignorar as ações do rapper.” Um ex-funcionário relatou que, durante uma reunião, Kanye teria mostrado imagens íntimas de sua ex-esposa, Kim Kardashian, para constranger a equipe. Ele usava o medo e a manipulação para afirmar sua dominância, afirmou um ex-colaborador. Segundo os relatos, Kanye fazia com que funcionários ficassem desconfortáveis propositalmente, incluindo a “exibição de vídeos pornográficos em reuniões de negócios.”
Não é a primeira vez que Kanye West expõe a esposa. Diz Cordaro que o casal foi flagrado em momento íntimo durante passeio de barco na Itália em 2023. “Nas imagens, Bianca aparece ajoelhada enquanto Kanye estava com as calças abaixadas, o que levou a investigações por indecência pública.” Matéria da Revista Isto é retrata a trajetória de Bianca Censori. Segundo a reportagem, Bianca Censori é uma arquiteta e modelo australiana de 30 anos. Nascida em Melbourne, na Austrália, formou-se em arquitetura pela Universidade de Melbourne e fez carreira no design, mas ganhou fama mundial por seu relacionamento com Kanye West, que a levou a assumir um cargo de chefia na Yeezy, em 2020, marca de moda criada pelo rapper. Ali, “atua desenvolvendo conceitos arquitetônicos, mobiliário e espaços alinhados à estética vanguardista da grife”. No mundo do design, tinha sua marca própria de joias, a Nylons Jewellery, e, à época da reportagem, planejava lançar sua própria linha de moda ainda em 2025, com apresentações previstas para as semanas de moda de Nova York e Los Angeles. Casados desde 2022, não é a primeira vez que acompanha West com peças transparentes ou reveladoras, influência direta dele, diz a reportagem. Ela também foi acusada de envio de conteúdo pornográfico para grupo de trabalho, incluindo imagens de um menor de 14 anos, produto de suposto estúdio de pornografia da marca Yeezy, fato nunca esclarecido.
Em suas redes sociais, diante da enxurrada de críticas, reportagem de O Globo diz que Kanye West veio a público no dia 4 (terça-feira) para comentar pela primeira vez o uso do polêmico vestido transparente. “Diante da enxurrada de críticas que vem recebendo, o artista usou as redes sociais da marca de roupas Ye para enaltecer o fato de a companheira ter ganhado fama com o caso ao aparecer praticamente pelada diante das câmeras. “Ela é a pessoa mais buscada no Google no planeta inteiro vestindo uma roupa da marca YZY”, escreveu ele, em publicação nos stories do Instagram, exaltando a grife que é criação dele“. Entretanto, a mesma matéria cita uma informação importante, de que as declarações se sucedem em post que “o rapper vem publicando e apagando (e publicando e apagando constantemente)” e complementa: “Ele classificou o traje de Bianca como ‘arte'”.
A vida privada como negócio
A verdade é que tanto Kanye West como Censori são pessoas perfeitamente adaptadas ao mundo novo da extrema direita. Aqui, o ponto-chave são os negócios. Se o nu da própria esposa serve para fazer golpes publicitários, tanto melhor. As matérias afirmam que Bianca mostrava confiança expondo seu corpo nu enquanto West a olhava fixamente, dizendo, segundo a leitura labial, “faça seu show agora”. Não foi o que me pareceu. O que eu vi nas imagens é que, se o corpo se apresentou confiante, seu olhar não. É que a nudez não é algo qualquer. Entendo que West, com suas atitudes, é um exemplo de artista de extrema direita que revela como eles veem o corpo das mulheres.
A julgar pelas atitudes de West, a extrema direita tem interesse no corpo da mulher. Isso não é uma novidade em se tratando de capitalismo, mas interesse em que sentido exatamente? O filósofo Giorgio Agamben, em sua obra Nudez (Autêntica, 2014), dedica-se a este tema. Ele parte da performance da artista Vanessa Beecroft realizada no dia 8.4.2005, na Neue Nationalgalerie, em Berlim. Da mesma forma que Bianca Censori, vestindo collant transparente, ali se apresentaram cem mulheres nuas que, como a esposa de Kanye West, estavam ali para serem vistas, o que coloca a situação de que em ambas as situações predominam homens vestidos observando corpos nus de mulheres, “cena [que] evoca irresistivelmente o ritual sadomasoquista do poder”.
Assim, o “faça o seu show” enunciado por Kanye West é uma ordem, exercício do seu poder, expressão que lembra também a cena descrita por Agamben de Saló, de Pasolini, a dos quatro hierarcas que, vestidos, fazem a inspeção de suas vítimas “que são obrigadas a entrarem nuas após terem sido atentamente examinadas, com o intuito de avaliar as suas qualidades e os seus defeitos” (p. 90). Se na performance artística, diz Agamben, nada havia do olhar entediado das mulheres em direção ao público, a performance de Censori parecia mais estar próxima não somente do exemplo de Saló, mas de outro exemplo, o da “prisão de Abu Ghraib, [onde estavam] os militares norte-americanos diante da multidão de corpos nus dos prisioneiros torturados”. Não era esse o significado do desconforto do olhar de Censori em seu collant cor da pele que a deixava nua? Na performance artística, diz Agamben, nada acontece porque “exatamente ali não parecia existir nenhum traço de nudez” (p. 91). Que traço de nudez então encarna Censori?
É que o filósofo está preocupado em recuperar as características religiosas da nudez. “A nudez é inseparável de uma assinatura teológica”, diz Agamben. Ele entende que, desde a narrativa do Gênesis, segundo a qual Adão e Eva, após o pecado original, percebem pela primeira vez que estão nus, isso tem um caráter de revelação. Mas antes da queda, frisa o filósofo, eles ainda estavam nus, mas não se davam conta por estarem cobertos “por uma veste de graça, que os envolvia”, espécie de veste de luz.
O corpo como imperativo de poder
Agora, nessa época em que a tanga de folhas é também um negócio quando é substituída pelo collant cor da pele da marca de propriedade de Kanye West, a expulsão do paraíso se dá no exato instante em que ela se despe do casaco preto de pele. A nudez religiosa só acontece negativamente como privação da veste da graça, diz Agamben; a nudez da extrema direita só acontece como imperativo do poder, imperativo do gozo que, sob o mando do lucro que é a axiomática que persegue os neoliberais em geral e a extrema direita em particular, e que produz sob coação, “uma nudez plena se realiza, talvez, exclusivamente no Inferno, no corpo dos danados irremissivelmente oferecidos aos tormentos eternos da justiça divina. Não há, nesse sentido, no cristianismo, uma teologia da nudez, mas apenas uma teologia da veste” (p. 93).
A citação de Agamben é inspiradora. Ela nos aponta para o inferno destinado às mulheres no universo da extrema direita. Aqui, agora mais uma vez, os corpos femininos serão transformados em objeto de consumo, oferecidos como produtos de mercado à luz do dia. Já tínhamos isso na pornografia, mas ela ainda passou das páginas das revistas masculinas lacradas para os sites adultos que perguntam sua idade. A mulher aqui é objeto do pornô, indústria de alienação em massa do corpo feminino principalmente, mas que ainda vivia em espaços, digamos assim, que tentavam ser restritos: “não diga que eu não avisei”, etc. Se no cristianismo não há uma teologia da nudez, no capitalismo há. Agora, a veste é substituída pelo corpo feminino nu.
Mas isso vai além. Sabemos pelo marketing que todo o corpo belo vende. Vende mais quanto mais deixar “aparecer” do próprio corpo, como fazem as propagandas de cerveja. É que o corpo da mulher vende mais, diria Donald Trump, que, aliás, também esteve envolvido em escândalos sexuais. Em 2023, Trump foi condenado por abuso sexual contra Elisabeth Carrol. O senador americano John Cornyn, do estado do Texas, disse em seguida: “Acho que ele não consegue ser eleito. Você não consegue ganhar uma eleição geral apenas com sua base.” Não foi o que aconteceu e Trump elegeu-se, exatamente também por encarnar o perverso no campo sexual. A extrema-direita é indiferente aos sentidos do corpo, desde que ele sirva para o lucro. Mas o que Agamben quer dizer é que a teologia coloca a questão do corpo nu na relação entre natureza e a graça: “o homem foi criado desprovido de vestes, isso significa que ele possuía uma natureza particular, diferente da natureza divina. O problema da nudez é, portanto, o problema da natureza humana na sua relação com a graça” (p. 95). Não é que uma mulher ou homem não possam se despir, mas o contexto nos diz muito da natureza humana.
Diz Agamben que, se a veste foi algo incorporado ao homem, ela pode ser retirada. Eu diria que, neste campo simbólico, o que acontece na ação de West é que revela o desejo do capital em ser Deus. Se a veste que a graça oferece no Gênesis significa para Adão e Eva que eles têm uma verdade, o é porque “só essa veste lhe confere a sua dignidade e torna visível aquilo a que Deus o destinou através do dom da graça e da glória” (p. 99).Mas não há paraíso no universo de Kanye West, há apenas o interesse de transformar o corpo da própria esposa em produtor de valor de mercado. Fim do respeito e de qualquer dignidade. Agamben diz que, na visão católica, o “devir visível da nudez” apresenta-se como uma possibilidade da degeneração da natureza humana. Aqui está a jogada de West, a de substituir a necessidade cristã da graça pela necessidade de valoração do capital, degeneração do cuidado que deve ter um casal entre si revelada nas curtidas e compartilhamentos de que West se orgulha da imagem que produziu e que circulou no mundo. Entendo que a imagem diz: de agora em diante, tudo na mulher me pertence.
A teologia da extrema direita
A extrema direita sonha com a escravidão da mulher. Afirmando a necessidade de capitalizar em direção à sua música e a seu público, a extrema-direita quer agora fazer da necessidade de expor o corpo da mulher nua sua nova teologia. O pecado original capitalista é imaginar que, com o desnudamento da mulher, se agregue valor ao capital, como o rapper Kanye West, que quer ser fotografado ao lado de sua esposa nua para valorizar a si mesmo. Se tememos expor a nudez que cobre nossas imperfeições na crença cristã recuperada por Agamben, a exposição nua e crua de Censori assume nossa corrupção da natureza produzida pelo capital. Diz Agamben: “A nudez não é um estado, mas um acontecimento” (p.101). No passado pré-capitalista, a nudez pertencia ao tempo e a história, bastando para isso verificar os significados de O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli. Ali vemos, no centro da pintura, a Vênus de pé sobre uma concha. Ela parece flutuar cercada por deuses e outros seres. Sua inspiração é As Metamorfoses de Ovídio, que mostrou que a deusa do amor nasceu diretamente do oceano. Ali o nu representa o amor como princípio vital e a força de renovação da natureza. A nudez no pré-capitalismo tem inúmeras narrativas; a nudez da extrema-direita capitalista só possui uma narrativa: a do corpo subserviente ao lucro. Fim do Outro.
A Vênus que Censori quer encarnar é um acontecimento, sim, mas publicitário, não mitológico. Ao contrário da nudez que tem história, que tem passado, a nudez de Censori não tem narrativa. Somente o casal sabe os motivos reais que levaram Censori a ficar nua, mas o que sabemos é que, entre eles, está o desejo de poder de West. O que precisamos é encontrar, no desejo perverso de nudez da extrema-direita, nos termos de Agamben, é “compreender e neutralizar o dispositivo que a produziu” (p. 102). Eu diria que a imagem registrada, nos temos do filósofo, perde para a nudez a sós, a do casal, a que, nos termos de Georges Bataille de seu O erotismo é o ápice da relação humana, porque é uma nudez publicizada, transformada em espetáculo e talvez, no meu entendimento, uma outra forma de violência protagonizada a revelia do desejo da mulher como exercício de poder do homem. Agora, o pecado original do capital não é expor a mulher nua, é submeter o seu desejo: há ainda uma centelha de vergonha no olhar de Censori que se expõe ao público, ao olhar consumista de seu corpo. Nessa imagem, são sempre olhos masculinos atravessados pelas lentes dos fotógrafos – haveria de se perguntar se havia fotógrafas mulheres na ocasião e o que pensaram do gesto de Censori.
Mas como punir a exposição do nu de Censori? Qual o equivalente religioso da punição cristã para o gesto confuso e obsceno que protagonizou, já que a vergonha parece não ser suficiente para preservar a graça do ser feminino em relação a… desgraça do masculino ou a maldição da “descarga ligeira”, como prefere Alain Finkielkraut em seu A nova desordem amorosa (Brasiliense, 1981)? Aparentemente, o próprio capital, também ele, preserva sua teologia. Matéria do site Purepeople afirma que “Kanye West sofreu um prejuízo financeiro gravíssimo após circular com a esposa em roupas transparentes no Grammy 2025. Segundo o tabloide britânico Daily Mail, o cantor perdeu um contrato milionário para dois shows no Japão, onde mora com Bianca Censori há quase um ano. Kanye assinou contrato para realizar dois shows no lendário estádio Tokyo Dome em maio. No entanto, a repercussão do escândalo no Grammy afastou os investidores. O rapper receberia 20 milhões de dólares (R$ 115,8 milhões na atual cotação) pelas apresentações.“ Aparentemente, se a busca do lucro nasce pela exposição do nu, ela morre pelo nu.
Contra o dom da graça no corpo, como define a teologia cristã, a estratégia do sádico é revelar o corpo que põe em evidência a inércia da carne, diz Agamben. Não é exatamente esta a definição da imagem da cena do nu no tapete vermelho? “O sádico procura por todos os meios fazer com que a carne apareça, fazer com que sejam assumidos pela força exercida sobre o corpo do outro certos comportamentos incongruentes e certas posições que revelem sua obscenidade, isto é, a perda irreparável de toda a graça” (p. 112). Aqui, a graça de que fala Agamben é a da definição cristã, presente no corpo nu iluminado por Deus, que é atualizada no gesto da remoção do casaco de pele de Censori que agora passa a ser o equivalente sadomasoquista da mulher desnudada, amarrada, submetida a constrições, que assume posições antinaturais – ela se mostra ao deleite do olhar masculino que a consome “o corpo do outro é agora inteiramente carne obscena e ofegante, que conserva docemente a posição que o algoz lhe atribuiu e parece ter definitivamente perdido a liberdade e a graça” (p.114). É por isso que West não passa de um desgraçado, isto é, um sádico que, em nome do desejo perverso do capital, manipula uma mulher, a trata como um instrumento ou objeto, gesto que retira a graça, daí …des-graça. Se pudesse, West faria que o nu de Censori se parecesse com as esculturas da mostra Human Bodies, em cartaz na capital, ou, como ele mesmo cita, o nu de cera de Clemente Susini feito para o museu de História Natural do Grão-Duque da Toscana, onde “é possível destapar camada por camada, deixando aparecer, em primeiro lugar, as paredes torácicas e abdominais, depois a panóplia dos pulmões e das vísceras ainda cobertas pelo omento maior, em seguida o coração e as sinuosidades intestinais e, por fim, o útero, no qual se entrevê um pequeno feto. Mas, por mais que o olhar o abra e o apalpe, o corpo nu da bela desventrada permanece obstinadamente inatingível “(p. 114).
O olhar predador e o fantasma
Eis a descrição perfeita do olhar que a extrema direita dirige à mulher. Assim como o olhar para os mercados, para sua insaciável exploração, exatamente como se dá em direção à ganância pelos meios naturais, é sempre de um olhar predador que se trata. Não há solidariedade, afeto ou qualquer outra forma de expressão a colocar na relação a dois se não a que se exerce em nome do poder. De uma certa forma, o fato de que Kanye West também tenha investimentos na indústria da moda corrobora a hipótese de Agamben: o nu, no passado ou no presente, é sempre uma relação com o vestir sob a influência de uma luz. No passado, a luz divina; no presente, a luz do Outro, equivalente ao olhar do capital transubstanciado no homem, West. Se Censori ainda tem um collant para ficar na ambiguidade do nu/vestido, é porque algo do passado se preserva no presente; se West tem a Yeezy – agora rebatizada de Ye depois de seu encerramento com a parceria da Adidas – a razão de seu sucesso também está na moda, no vestir, além da música: desde 26 de junho de 2024, o site da Yeezy.com não aceita pedidos porque tem um enorme acúmulo deles para atender. Como se vê, tirar a roupa ou colocá-la não é apenas algo produto da graça divina, mas também da… graça do capital!
Aganben afirma que a importância da nudez está, no sentido bíblico, em ser o primeiro objeto e conteúdo de conhecimento. Por isso, ele pergunta: “O que se conhece quando se conhece uma nudez?” (p. 117). Se o sentido mítico da nudez, a da graça dos primeiros homens que viram seus olhos abrirem no Paraíso, é a da abertura da verdade, ver o corpo nu significa ir além de qualquer segredo, sair da condição de feliz ignorância. O nu de Censori, sem a graça, é des-graça, nos mostra o mundo em que vivemos. Hoje, vivemos na ignorância: o Paraíso hoje seria um mundo em que não haveria precarização do trabalho, exploração do homem pelo homem e que a mulher seria tratada com dignidade. Nada disso acontece e a maioria sequer se dá conta das formas de exploração em que está envolvida. Estamos em queda sim, não como Adão e Eva do Paraíso, não a queda da carne que Censori é obrigada a mostrar por uma relação que, entendo, só pode ser tóxica: nos termos de Agamben, o nu de Censori nos mostra a queda não da carne, mas da mente, do modo como imaginamos fazer amor com um Outro, seja homem ou mulher.
A lição do episódio da nudez de Censori é que ela nos diz que passamos a viver buscando os fantasmas que o capital nos oferece, da mercadoria que promete felicidade por sua aquisição ao corpo belo que substitui o corpo real: em todos eles, a intenção pura do capital é apenas a da predação. Nesse sentido, eles também são mais da experiência da sombra térmica, porque é mortal, extingue qualquer possibilidade de felicidade no encontro com o Outro e, sem relação, a vida perde o sentido. Censori diz aos fotógrafos, a maioria homens, o seguinte: querias ver meu segredo, então olha isto: estou nua, não há nada mais que isto. Como nas demais dimensões do social sob o jugo do capitalismo, não há mistério no desejo predador do capital, não há sedução no olhar sexual da extrema direta. Como nas demais mercadorias, há apenas consumo do corpo do Outro, e por isso, a imagem de Kanye West que observa Censori representa essa sombra do desejo masculino no feminino, imagem tão mortal como a da experiência da sombra térmica porque evoca uma mulher em estado de desaparecimento. Como diz Ernst Schmitter em A economia como catástrofe (Editions Crise et Critique), a catástrofe econômica em que vivemos é baseada na dissociação dos valores que o capitalismo produz. Não é incomum que as lutas sociais sejam assim: você se compromete totalmente, dá o melhor de si, mas se não conhecemos o seu modo de funcionamento simbólico, só podemos fracassar em nossas lutas sociais porque o sistema continua se perpetrando. A cena do nu é parte da dinâmica desse sistema invisível de crenças continuamente reelaboradas pela extrema direta, que dissociam nossos valores e que continuamos ignorando. Mas a sombra de um homem sobre uma mulher nua não pode ser ignorada.
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Foto da Capa: Reprodução de Rede Social