Eu sou contadora de histórias e com frequência me deparo com literaturas que pegam de jeito, arrebatam! A leitura que me impactou no ano de 2021, ao fazer a narração para meus alunos, chama-se: “A parte que falta”, do autor norte-americano Shel Silverstein (1930-1999).
Na sinopse do livro, vemos que o protagonista desta história é um ser circular que visivelmente não está completo: falta-lhe uma parte. Ele acredita que existe pelo mundo uma forma que vai completá-lo perfeitamente e que, quando estiver completo, vai se sentir feliz de vez. (Clique aqui para ver a animação desta história).
Em meio a páginas de diálogos e outras só de imagens, a cada novo passo o personagem diz assim:
“Oh, busco a parte que falta em mim, a parte que falta em mim. Ai-ai-iô, assim eu vou, em busca da parte que falta em mim.”
Eu também andava em círculos em busca de algo que faltava em mim. Sei que a busca por algo que nos complete faz parte do nosso cotidiano. Por muito tempo, eu achava que minha completude se referia à busca em outros ou de coisas que pudessem fazer total sentido. Ao encontrar tal coisa, recomeçava a busca por outra e novamente me colocava nesse ciclo sem fim de insatisfações.
Em meio a esse processo muito pessoal de buscas, entrei de cabeça no descontrole alimentar e hormonal, o que me fez, por décadas, lutar contra a obesidade que insistia em fazer morada em meu corpo, em minha mente e em meu espírito.
Após a gestação da minha filha mais velha, que completará 18 anos, iniciei a batalhas por me manter no peso ou não aumentar mais ainda os 30 kg adquiridos na gravidez.
Os processos vividos ao longo de 18 anos de busca de um peso ideal, me fizeram entrar em um looping de dietas, medicações, consultas, receitas malucas, baixa autoestima, dependência e depressão, entre outros.
Falar sobre a doença da obesidade é algo delicado ainda para mim, mas vai se tornando cada vez mais necessário, por conta da decisão que tomei em 2022: fazer a cirurgia bariátrica.
“Oh, busco a parte que falta em mim, a parte que falta em mim. Ai-ai-iô, assim eu vou, em busca da parte que falta em mim.”
O ano de 2023 foi de tomada de decisão para outras mulheres pretas como eu. Luana Xavier e Jojô Todynho trilharam o mesmo caminho, e as ouvindo compartilhei de experiências parecidas. Anos de sofrimento, problemas inúmeros de saúde e a busca por uma qualidade de vida que passa sim pela estética, mas não é o objetivo primeiro. Mulheres pretas buscando se amar, priorizando a si, mesmo diante de críticas: – Ué não era feliz gorda? Não se amava como era? Não contou que operou por quê?
“Ao buscar na bariátrica a parte que me faltava, percebi que sempre esteve ali (a minha essência). E esta busca pela saúde, pela qualidade de vida e por uma existência com mais sentido, aprendi no autocuidado que estou inteira na minha incompletude.” A ideia de acabado, concluso, completo é algo humanamente impossível de ser alcançado e para mim a paz de saber e sentir isso não tem preço.
Atualmente, ouço com frequência que eu mudei, e as pessoas afirmam: não é só sobre o peso Fê, é sobre o que tu está transmitindo.
Esse texto não é uma narrativa romântica, nem um atalho milagroso para o emagrecimento, mas, sim, um relato do quão importante essa decisão foi para mim, para que eu buscasse e encontrasse em mim a Fernanda que realmente quero viver pelos próximos anos, entendendo a importância da evolução.
“Oh, busco a parte que falta em mim, a parte que falta em mim. Ai-ai-iô, assim eu vou, em busca da parte que falta em mim.”
A preparação para a cirurgia inicia na escolha dos profissionais que vão lhe atender, no caso de atendimento particular ou pelo seu plano de saúde, uma vez que no SUS o acesso é mais dificultoso e uma fila de espera que pode ser de anos.
É importante estudar sobre o tema e entender que não estamos falando de dieta, nem de emagrecimento, mas de um tratamento de saúde para quem já fez suas tentativas mais tradicionais e não obteve resultados esperados. A análise clínica através da bateria de exames de sangue, de imagem, etc., também são fundamentais para a avaliação de sua condição para a cirurgia. Não basta somente o seu querer operar, é preciso condições e pré-requisitos para.
Os protocolos de pré e pós operatórios dependem de cada clínica e é importante que os respeite e confie em sua equipe médica (siga todas as recomendações), pois é algo complexo que demanda cuidados intensivos e a compreensão do que vai viver e ter que deixar de lado. O bariátrico está em tratamento para SEMPRE!
A obesidade é uma doença e lutaremos contra ela enquanto obesos em recuperação. Essa afirmação caiu como uma bomba na minha mente no início do tratamento e neste dia assumi um compromisso comigo mesma de lutar para que a cada dia, pudesse estar mais perto da minha vida saudável.
Até o momento eliminei 31 kg e ainda estou no início da caminhada com seis meses de cirurgia na técnica “Bypass”. Nesse método o estômago é reduzido com cortes ou grampos e é feita uma alteração no intestino para conectá-lo à parte do estômago que irá permanecer funcional. No Brasil, o método de bypass é realizado em 70% das cirurgias, sendo o mais praticado no Sistema Único de Saúde (SUS).
Desde então muitas mudanças de vida vieram acompanhadas no pacote da “bari”, coisas almejadas e outras mudanças que não imaginava passar no pós operatório: separação, mudança de casa, de cidade, oportunidades de crescimento profissional, reinserção social, construção de novas redes de afeto e, olha só, até em uma banda de percussão eu entrei.
Escolher a bariátrica não é o caminho mais fácil como muitos dizem. Exige escolhas diárias e um priorizar-se, pois é necessário foco e atenção na alimentação diária, realização de exercícios físicos, suplementação e a busca da saúde mental e espiritual para dar conta de processar todas essas mudanças.
Sabe aquela parte que me faltava? Estou aprendendo que ela não existe e que eu posso ser e estar comigo de modo pleno, me conectando com um universo de coisas, pessoas e situações que vão me ajudar a ser quem quero ser.
Esse texto não é somente sobre bariátrica e emagrecimento… Percebe?
Encerro com um trecho do livro que é pura poesia:
“Não sou a parte que te falta! Não sou a parte de ninguém. Sou parte completa.”
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá
Foto da Capa: Pexels