“A parte que te cabe desse latifúndio” é um verso do poema “Vida e Morte Severina”, do escritor João Cabral de Melo Neto, que descreve as agruras dos trabalhadores rurais. O verso conclui que, depois de uma vida de sacrifício, a parte das terras onde Severino trabalhou a vida inteira que ele vai ganhar é a cova em que será enterrado. O poema foi musicado por Chico Buarque, numa gravação de 1966, num álbum que consolidou seu prestígio como cantor e compositor.
Desde aquele tempo, o agronegócio brasileiro evoluiu muito. Todos os dias vemos na televisão como o agro é importante para a economia do Brasil, como utiliza as mais modernas tecnologias e gera emprego para milhões de pessoas, tudo ilustrado por propagandas mostrando maquinário moderno, agricultores felizes e cenas de picapes reluzentes rodando em paisagens idílicas. Dá até vontade de largar a vida na cidade e ir viver no campo.
Ainda assim, não é difícil criticar o agronegócio. Afinal, muitos fazendeiros agridem a natureza, poluem o meio ambiente com excesso de fertilizantes e pesticidas, alguns exploram mão de obra em condições análogas à escravidão e há outros tantos que são criminosos e truculentos contra qualquer um que se opuser à sua incessante busca por mais dinheiro e poder. São outro (com o petróleo, os políticos…) dos nossos malvados favoritos.
Mas, como em quase tudo na vida, as coisas não são tão simples assim. Muita gente que vive falando mal do agronegócio não abre mão do seu churrasco no domingo ou do seu sanduíche com hambúrguer e queijo da sua lanchonete preferida. E de uma série de outros itens que só existem porque alguém cultivou a terra ou criou animais para produzi-los. E há muita gente boa, tanto fazendeiros como empregados, trabalhando duro para garantir que isso aconteça.
O agronegócio não apenas faz parte de um grande sistema mundial de produção de alimentos, do qual dependem as 8 bilhões de pessoas que habitam o planeta, mas também fornece os insumos para a fabricação de inúmeros produtos, como biocombustíveis, tecidos, borrachas e muitos outros.
Embora seja eficiente, o nosso atual sistema de produção de alimentos precisa mudar, se quisermos evitar a catástrofe ambiental que já está em andamento. Sem deixar de alimentar e fornecer produtos para os quase 10 bilhões de habitantes que o planeta terá em 2050. Para entendermos isso vamos primeiramente ver os aspectos negativos e positivos do agronegócio.
O lado ruim
A agropecuária é a terceira atividade econômica (depois da fabricação de materiais e a geração de energia elétrica)1 que mais emite gases de efeito estufa – 19% das emissões globais. E essa estimativa não inclui a emissão de gases pela produção dos materiais e outros insumos utilizados pelo agronegócio, nem a emissão pelo transporte de suas mercadorias.
Na agropecuária, o metano (cuja fórmula química é CH₄) e não o CO₂ é o gás mais emitido. O metano é 80 vezes mais potente do que o CO₂ em termos de efeito estufa e é produzido principalmente pelo sistema digestivo dos bovinos, principalmente seus arrotos, conforme eu já expliquei em uma coluna anterior.
Outro gás de efeito estufa gerado pela criação de animais (todos os tipos) é o óxido nitroso (N₂O), que causa cerca de 256 vezes mais aquecimento do que o CO₂. O óxido nitroso é produzido pelas fezes dos animais e pelo excesso de nitrogênio usado como fertilizante nas lavouras.
Juntos, o metano e o óxido nitroso correspondem a 80% das emissões de CO₂ equivalente2 do setor agropecuário. Os demais 20% correspondem ao CO₂ produzido principalmente pelo desmatamento e queimadas.
As recomendações que se deduz desses dados são inequívocas: o desmatamento precisa ser interrompido completamente, e nós precisamos reduzir muito nosso consumo de carne, laticínios e outros itens de origem animal principalmente de bovinos.
Mas os malefícios da agropecuária não param aí. A expansão agropecuária causa cerca de 70% da extinção de espécies do planeta, naquela que pode ser a maior extinção em massa da Terra em 66 milhões de anos (a última, do final do Período Cretáceo, foi aquela que incluiu os dinossauros).
Além disso, a atividade agropecuária é responsável, por meio do desmatamento e do uso excessivo de produtos químicos (incluindo os compostos nitrogenados e os químicos tóxicos dos pesticidas), pela destruição de muitos habitats naturais, incluindo florestas, savanas, pântanos, manguezais e os solos férteis. Estes últimos, essenciais para a própria agricultura, estão sendo perdidos à taxa de 24 bilhões de toneladas por ano.
Além de reduzir a disponibilidade de terras para a agricultura, a perda de solos contribui para o efeito estufa, pois os solos estocam cerca de 4 trilhões de toneladas de carbono (a atmosfera contém 800 bilhões de toneladas). Destruir solos significa, portanto, liberar uma imensa quantidade de carbono.
Simplesmente, não podemos continuar produzindo alimentos da forma que fazemos atualmente.
O lado bom
Os 8 bilhões de habitantes do planeta não estariam vivos se não fossem os progressos na produtividade agrícola, na medicina e na higiene. Todos os demais avanços tecnológicos, dos celulares à internet, podem tornar a vida mais fácil e mais produtiva, mas não garantem a sobrevivência de ninguém. Alimentação e saúde, por outro lado, são essenciais.
O século XX assistiu a uma verdadeira revolução agrícola, movida pelo aprimoramento genético, uso de fertilizantes, defensivos agrícolas e mecanização. Essa revolução, também chamada de revolução verde, começou nos anos 1940 e ainda está ocorrendo em países menos desenvolvidos, representou (e ainda representa) um incrível salto de produtividade.
O agronegócio brasileiro tem razão de se orgulhar do seu papel na economia e de seus significativos ganhos de produtividade. A expansão das fronteiras agrícolas brasileiras para lugares como o Cerrado e a Amazônia só foi possível com a ajuda de pesquisadores de universidades e outras entidades de pesquisa, com destaque para a Embrapa.
O agro brasileiro ainda pode fazer muito em termos de ganho de produtividade. E isso pode ser obtido sem a destruição adicional da vegetação nativa, pois deveria ser de interesse dos próprios fazendeiros garantir a preservação das fontes hídricas, reduzir e até mesmo recuperar solos férteis e manter o atual regime de chuvas. Todos ganhariam com isso.
O que fazer?
É urgente que se evite o uso excessivo ou mesmo a eliminação do uso de fertilizantes e pesticidas (a maioria tóxica para muitas plantas, animais e seres humanos), combater o desmatamento ilegal e melhorar na legislação (neste momento o Congresso se prepara para aprovar vários projetos que reduzem a proteção das florestas e outros ambientes naturais).
Você pode ajudar no esforço para impedir a continuidade da devastação no Brasil pressionando os políticos para aperfeiçoar, e não piorar, a legislação, governos para aumentarem a fiscalização e ações preventivas, e a justiça para ser mais rápida e severa na punição dos que cometem crimes ambientais. Se você não tem tempo ou paciência para isso, contribua para ONGs que o fazem.
Por outro lado, há algo que você pode e deve fazer imediatamente: mudar seus hábitos alimentares. Esse é o assunto da próxima coluna!
Notas
¹Para uma visão mais completa dos processos que geram gases de efeito estufa, consulte meu livro “Planeta Hostil”. O livro descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta e pode ser adquirido nas principais livrarias físicas do Brasil, no site da editora Matrix e em livrarias online como a Amazon.
2Para se calcular o CO₂ equivalente de um determinado gás, compara-se o potencial de cada um de produzir o efeito estufa com o potencial do CO₂. Assim, se o metano é 80 vezes mais potente que o dióxido de carbono, 1 tonelada de metano equivale a 80 toneladas de CO₂, e assim por diante.
Observação final: para vídeos e textos adicionais, confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
Mais textos de Marco Moraes: Clique Aqui.