O título deste texto é um trocadilho para aprender a perder e foi inventado por mim há algumas semanas. Ele voltou à minha lembrança depois da entrega do Oscar no último domingo, quando Fernanda Torres falou algo sobre quando uma derrota é uma vitória, e fiquei refletindo sobre perdas e ganhos. Somado ao Oscar, comecei a ouvir um podcast conduzido por Fernanda Lima chamado “Zen Vergonha”, tratando nessa temporada sobre menopausa, fase da vida da qual sinto que já me aproximo e na qual já vejo várias corajosas amigas, cada uma com seus sintomas e sua força, enfrentando, dialogando com o próprio corpo e com todas as adaptações que se impõem nesse período. Ao ouvir os episódios descrevendo a incontável série de sintomas e desconfortos que essa derrocada hormonal pode trazer à mulher, me invadiu o pensamento de que ser mulher é, desde cedo, um aprendizado sobre a capacidade de perder. Perdemos o corpo infantil, perdemos sangue todo mês, perdemos a forma do corpo ao engravidar, perdemos a liberdade ao nos tornarmos mães de uma forma muito peculiar que homens não perdem, mesmo quando são os pais mais presentes e atentos que puderem.
Depois perdemos colágeno, o que nos afeta fisiológica, social, política e psicologicamente de uma maneira avassaladora, perdemos dinheiro em procedimentos estéticos ao longo de uma vida toda para atender um padrão estético que nos consome e martiriza, perdemos o sono e a sanidade no puerpério e anos depois, no climatério. Descrevendo dessa forma, posso parecer pessimista, mas, ainda com tantas perdas já no currículo e as outras que ainda estão por vir, sigo pensando que ser mulher é irresistível por tantas camadas fascinantes que esse lugar oferece. Mas o foco aqui é a perda e a forma pela qual o perdido pode ser uma bela lição sobre quem podemos ser ou tornar-nos. A canção da banda Los Hermanos decreta que todo carnaval tem seu fim, e essa época do ano nos remete ao fim da fantasia e à entrada na dita realidade, mesmo que esse termo abarque tantas interpretações. Abrir mão da fantasia em prol da realidade também é uma perda, mas que pode, a médio e longo prazo, trazer alívio. Esse feriado eu optei por não sair da cidade e os sentimentos oscilavam entre alívio pela não correria e simultaneamente o sentimento por estar perdendo a possibilidade de estar fora da cidade nesses dias de folga e calor.
Em compensação, após uma pequena reforma na sala da minha casa, meus livros ganharam novas estantes e eu tive o prazer de usar esses dias para uma grande faxina e revisão de todos os meus livros e reposicioná-los em seus novos espaços e assim pensar em uma nova distribuição para eles. Rever os livros da própria biblioteca é uma vasculha ao passado, a momentos e pessoas, as que tivemos e as que já fomos. Assim como com nosso corpo e nossa vida, alguns livros precisam ser passados adiante. Porque já não conversam mais com quem somos ou porque já não precisamos mais deles e eles podem continuar exercendo sua missão em outras casas para outras pessoas. Tenho dificuldade em me desfazer de livros, eles são meus amuletos, minhas pegadas.
Uma biblioteca mereceria um texto inteiro somente sobre a metáfora possível com a própria vida. Talvez ser mulher seja também ser uma grande biblioteca que vamos montando ao longo da vida. Que histórias elegemos ler, contar, que tipo de literatura buscamos, por quais autores nos apaixonamos, como dispomos em nossas prateleiras as histórias que vivemos. Ser mulher sempre rende boas histórias, mesmo com todas as perdas inerentes do caminho. Abri mão de livros nessa faxina, como abri mão de pessoas e histórias. Carnaval é assim mesmo, essa melancolia misturada com a brincadeira de fantasiar-se de outro.
Por aqui, recolho as cinzas da quarta-feira, olhando para minha biblioteca pronta. Ela é meu DNA fora do corpo, minha impressão digital, minha herança para minha filha, meu caminho já trilhado e quem sabe a resposta para a estrada que ainda virá. Minha biblioteca é meu soletrar do mundo, minhas lágrimas, meus arrepios. Minha biblioteca é sonho, minha alfabetização emocional, meu desamparo, minha esperança, meu amor pela palavra que nunca se encerra. Já perdi livros, emprestei para quem nunca soube devolver, tomei outros que não devolvi, já comprei os que nunca hei de ler, já li histórias ruins, inverossímeis, outras brilhantes e inesquecíveis. Já perdi palavras, expectativas e amores, mas assim como a força da poesia, eu ainda não morri. Páginas amassam, mas não rasgam. Enquanto houver livros por serem lidos, amores por serem bem vividos, sigo.
Quem saberá quantos carnavais ainda me esperam?
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