Sentado ao lado do Comendador, ouvindo monocórdios cantochões de exéquias, o menino cochilava. Acordou com um acesso de tosse do avô, bem no momento em que o bispo metropolitano entoava o Requiescat in pace. Em seguida, vieram parentes e amigos com as condolências de praxe. E o Comendador, emocionado, fungando, agradecia. Terminada a cerimônia, o caixão foi levado numa carruagem puxada por quatro percherões brancos até o mausoléu da família no cemitério da Santa Casa.
Descendente dos primeiros açorianos colonizadores da cidade, já nascera com um alentado patrimônio de casas, terrenos, ações do Banco da Província e um grande e próspero atacado estrategicamente situado na beira do rio. A fortuna da família, na verdade, fora iniciada pelo pai do Comendador com um baratilho na rua da Igreja. Em poucos anos de trabalho, construiu o armazém de secos e molhados de frente para o Caminho Novo e com fundos para o rio. Lá atracavam os barcos provenientes das colônias italianas e alemãs com produtos agrícolas e manufaturados para o mercado consumidor da cidade que não parava de crescer.
Mas a grande oportunidade na vida do comerciante açorita se apresentou com o início da guerra do Paraguai (1865-1870). Cerca de cinco mil soldados do norte vieram para o Rio Grande, onde foram estabelecidas as bases de apoio logístico da campanha contra Solano Lopez. Não havia em todo o Estado um estabelecimento tão grande e suprido como o do pai do Comendador e, como consequência natural, ele foi escolhido pelo Ministério da Guerra para abastecer as tropas. Embora a lógica da escolha não fosse bem aceita pelos concorrentes, que diziam ter sido influenciada por fatores estranhos às regras de uma leal disputa comercial, o armazém de secos e molhados da beira do rio passou a fornecer de tudo para a soldadesca. Desde alimentos a fardamentos, arreios, abrigos para o frio e até pólvora e animais de tração. E em tais quantidades e por tanto tempo que, terminada a guerra, a firma Galves Marcellos era a mais próspera da Província.
Pois é o filho do titular dessa firma, Comendador Manoel Galves Marcellos, o protagonista desta história. Por ser o mais abastado comerciante da praça, como diziam os jornais da época, o Comendador Marcellos ocupava posições de destaque nas mais variadas instituições da cidade. Desde clubes recreativos, hospitais beneficentes, confrarias religiosas, entidades comerciais e bancárias e até no governo da Província, onde era sempre consultado em momentos de crises políticas, econômicas e institucionais…
A par de todas essas atividades, o Comendador patrocinava para a fina flor da sociedade citadina, fartas e frequentes festas em sua mansão perto do Jockey Club. Lá se comia e bebia à tripa forra os gostosos bacalhau e capitosos vinhos portugueses. Nestas festanças eram estabelecidas novas e rendosas amizades e consolidadas as antigas, constituídas por autoridades civis, eclesiásticas e militares. Não faltavam alguns artistas e intelectuais da moda, que ao final dos ágapes prodigalizavam o dono da casa e seus convidados com gongóricas peças oratórias seguidas de saltitantes valsas vienenses. Enredadas em inúmeros compromissos sociais e comerciais, essas licenciosidades gastronômicas se tornaram cada vez mais frequentes e opulentas. Com o passar do tempo, o Comendador passou a ostentar não só grandes reservas financeiras e patrimoniais como também uma farta adiposidade corporal.
E eis que, ao chegar aos cinquenta anos, o próspero comerciante possuía, além de elevadíssimas taxas de liquidez bancária, outras tantas de glicose, triglicerídeos e colesterol sanguíneos. Todas, somadas, causaram-lhe desgastantes disputas familiares e societárias, além de um enfarto e um diabetes. Das disputas, se livrou graças à cessão de pequena parte de seu patrimônio para os herdeiros e sócios. E o enfarto foi superado, ao se livrar de considerável parte de seu peso. Porém, o diabetes, resistente às rigorosas dietas e aos afamados médicos que consultou, acabou produzindo-lhe graves deficiências circulatórias e uma subsequente necrose da perna esquerda. Que o mais distinguido – e caro – cirurgião da cidade, doutor Terra Klessmann, não teve outro remédio senão amputar.
E era dessa parte importante da anatomia do Comendador, seu avô, que o menino, a contragosto, acabava de assistir à missa na Catedral Metropolitana e o enterro solene, no mausoléu da respeitável família Galves Marcellos, no cemitério da Santa Casa de Misericórdia.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Foto da Capa: Caminho Novo, atual Av. Voluntários da Pátria, em Porto Alegre.
Todos os textos da Zona Livre estão AQUI.