“Para entender as causas profundas da brutalidade da devastação da natureza em nosso país, precisamos dar-nos conta de certos aspectos psicológicos que, por mais generalizados que sejam, praticamente não são confrontados, discutidos e combatidos. Para quem tem visão e sensibilidade naturalista biológico-ecológica, é doloroso observar os fatos, mais doloroso ainda é constatar quanta gente, especialmente entre os que têm poder para promover mudanças, é incapaz de enxergar e de sentir revolta, muito menos de agir. O esquema educativo nos três níveis escolares continua preparando gente alienada diante da natureza, e os meios de comunicação, pouco contribuem para a necessária reeducação”.
O trecho acima faz parte do artigo Perniciosa Cegueira Cultural, escrito por José Lutzenberger (foto da capa) em 1997. O ambientalista influenciou o pensamento e a ação de muitas pessoas. Mais que isso, suas atitudes e medidas, enquanto estava no governo federal (antes de existir o Ministério do Meio Ambiente), foram determinantes para que muitas áreas fossem conservadas e a demarcação de terras indígenas fosse feita. Ele foi secretário de meio ambiente do Collor de Melo e teve importantíssima participação na realização da Rio 92 (no entanto, ele saiu antes do evento da Eco92).
Sociedade Regenerativa
Começo com o pensamento do Lutz porque, como mesmo disse sua filha Lara, no lançamento do documentário Sociedade Regenerativa, nessa semana, as palavras do seu pai estão muito atuais. “Parece que ele escreveu hoje”, comentou, referindo-se a um discurso que fez em uma das primeiras reuniões da Agapan. A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural foi fundada em 1972 pelo Lutz, Augusto Carneiro, entre outros inquietos daquela época.
A pré-estreia do média metragem foi na Cinemateca Capitólio para convidados e outros entusiastas do legado do ambientalista. O filme, dirigido por Pedro Zimmermann e produzido por Aletéia Selonk, foi um trabalho da Okna Produções, viabilizado com financiamento da Lei Federal de Incentivo à Cultura, leia-se Ministério da Cultura, e da Okna, em parceria com o Fronteiras do Pensamento e patrocínio da Braskem e da Rio Grande Seguros.
O Rincão Gaia é o fio condutor de uma narrativa poética, onde figuras como o líder Ailton Krenak e o escritor e biólogo Mia Conto, além da própria Lara e do professor Rualdo Menegat, tecem comentários tanto sobre o pensamento de Lutz, quanto sobre conceitos que embasam suas opiniões.
É um documentário com declarações que endossam a necessidade de mantermos acesa a chama da esperança. Para quem já frequentou o Rincão nos tempos do Lutz vivo e tem uma certa vivência na área ambiental, a obra não traz novidades, nem surpresas. É um bom filme para sensibilizar as pessoas que ainda não acordaram sobre o quanto está tudo interligado. E o quanto o Lutz foi um visionário. Temos muito a aprender com seu legado.
Verdade Inconveniente
Tenho me incomodado mesmo em constatar o quanto a capital gaúcha e o Rio Grande do Sul produz talentos, Ciência, têm pesquisas, cientistas e, no entanto, os donos da decisão ou não tomam conhecimento ou ignoram completamente o que os cientistas alertam. O desmonte da gestão ambiental do Estado, a ausência de medidas de enfrentamento às mudanças climáticas são alguns dos pontos que denotam essa situação.
A cada evento extremo – cada vez mais frequente, como a academia vem alertando – sempre a natureza é culpada. Pior: nesses tristes tempos de tanta fake news rolando, há quem nem acredite mais em alertas metereológicos. Uma conhecida, moradora do interior de Maquiné, que não estava no município do momento do ciclone extratropical, me disse que ninguém mais acredita no que os meteorologistas dizem. Só pra contextualizar: esse foi um dos piores eventos ocorridos no Estado nos últimos anos – com 16 mortos, 1.538 desabrigados e 13.824 desalojados em 48 municípios. Mais dados aqui.
Conviver com situações como as vividas na última semana exige muito de todos. E os prejuízos pela falta de energia? E os danos materiais? E o depois, tudo vai voltar ao “normal”? Talvez esse seja um dos maiores desafios da humanidade. Sabemos que não podemos fazer isso ou aquilo, que não podemos ocupar determinadas áreas, que precisamos nos preparar para futuros eventos. Mas não, fingimos que não vemos. Depois que passou a tragédia, fazemos de conta que está tudo bem. Esquecemos do que passamos. Até que um dia, a natureza e seu humor oscilante, resolvem mostrar quem manda no pedaço porque a inteligência do Homo sapiens foi dar mais valor ao dinheiro do que a vida e as futuras gerações.
A legislação ambiental que imperava no Brasil, antes das mudanças no Código Florestal, causava incômodos porque tentava respeitar os limites que a natureza impõe. Só para clarear: a distância das margens dos cursos d’água deveria considerar os períodos de cheia dos mananciais, ou seja, as matas ciliares, Áreas de Preservação Permanente (APPs). E, como temos visto no decorrer dos séculos, os ditos ‘racionais’ diminuem cada vez mais o espaço para o fluxo dos rios. E ainda impermeabilizam o solo para impedir a absorção da água nas cidades. O poder público faz vista grossa na ocupação de áreas de risco. O modus operandi da agricultura e da pecuária desconsidera, em grande parte das vezes, o funcionamento da natureza. A urbanização ignora que existam nascentes, córregos, vida pulsante, onde a água busca seu caminho.
Enfim, a busca de soluções para problemas sistêmicos complexos precisa envolver todos os segmentos da sociedade, do governo, da academia. Precisamos de visão de longo prazo, não dá mais para “tapar o sol com a peneira”. Então pergunto: quem hoje pressiona os governos e os parlamentares para que medidas de adaptação e mitigação à crise climática sejam adotadas de fato? Me conte, por favor, quantos parlamentares (municipais, estaduais e federais) estão preocupados com isso? No Rio Grande do Sul, nem mesmo resolvemos os prejuízos da estiagem do verão e já estamos tendo que dar conta das enxurradas do inverno que recém começou.
Os ensinamentos do Lutz e daqueles que faziam a terra dos gaúchos ser conhecida como pioneira do ambientalismo precisam ser revistos, entendidos. A natureza tem dado muitos sinais do quanto os rumos do desenvolvimento a qualquer preço têm trazido prejuízos em várias esferas. Talvez os primeiros passos para acordarmos seria mais gente assistir filmes como o Sociedade Regenerativa. A ideia da produção é que o média metragem circule. Nos próximos meses, pretendem incluir o filme à grade de programação de canais de televisão e de streaming. O bom mesmo seria se todos os parlamentares, prefeitos, secretários, políticos assistissem e compreendessem o quanto é urgente fazer um upgrade de mentalidade. Pois já está mais do que comprovado que somos parte da natureza e precisamos respeitar os seus mecanismos de funcionamento.
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