É fato notório que temas relacionados à chamada pauta dos costumes voltam às casas legislativas em anos eleitorais. Um jogo de poder e influência envolve parlamentares ávidos por votos, por cargos e especialmente por projeção política, trocando favores e lidando com assuntos sérios como se fossem opções por séries de streaming.
Um exemplo disso é que pautas como o tratamento penal do usuário de drogas e o aborto vão e vem em movimento pendular de luzes e ostracismo. Quando em evidência, surgem em formato de projetos de lei ou de emendas constitucionais populistas, oportunistas e carentes de proporcionalidade, dissociados do sistema legal vigente, das regras constitucionais e da realidade social.
Ainda que esses movimentos sejam esperados no contexto brasileiro, no qual parlamentares trocam de partidos e de ideais como quem escolhe gravata ou batom, o PL 1904/2024 surpreendeu a todos, amargando, felizmente, 88% em rejeição pela população em geral, em votação do próprio site da Câmara dos Deputados.
Entre as proposições absurdas do deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro, Sostenes Cavalcante, apoiado pela bancada evangélica, estão a equiparação do aborto praticado pela gestante ou consentido por esta e do aborto sem consentimento ao homicídio simples, sempre que houver viabilidade fetal presumida em gestações acima de 22 semanas, o que significa possibilidade de pena mínima de 06 e máxima de 20 anos de reclusão.
O projeto também acaba com a excludente de ilicitude do médico, quando, em caso de estupro, executa o aborto após a 22ª semana de gestação. De outra ponta, como uma benesse, prevê que no aborto provocado pela gestante ou consentido por esta, o juiz poderá mitigar a pena ou deixar de aplicá-la, caso as consequências da infração atinjam o agente de forma tão grave que a sanção se torne desnecessária, em hipótese de perdão legal e deixando claro que a pena tem finalidade unicamente punitiva.
A leitura do projeto já à primeira vista evidencia a falta de proporcionalidade, pois passa-se a punir o aborto por estupro de forma mais severa que o próprio estupro de vulnerável, como se a necessidade do aborto, nestes casos, não fosse decorrente unicamente de anterior estupro. A fixação de idade gestacional máxima para interrupção da gestação, até então inexistente na lei, se não significa um traço perverso do redator, demonstra outra característica marcante dos nossos parlamentares: a falta de noção da realidade social das camadas populares servidas pelo sistema único de saúde e quase sempre sem acesso rápido a serviços médicos, já que apenas 3,48% dos municípios brasileiros têm estabelecimentos públicos para aborto legal.
Além disso, a grande maioria dos estupros ocorridos no país não tem como vítimas mulheres adultas e esclarecidas, que em poucas semanas identificariam uma gravidez e, tranquilamente, cuidariam dos trâmites para submeter-se a aborto legal no prazo razoável. A realidade deste crime é muito mais perversa, pois atinge habitualmente meninas. No Brasil, são notificados por ano 75 mil estupros, dos quais 88% têm como vítimas mulheres e destas, 60% têm até 13 anos de idade. Em números absolutos, estamos falando de 24.700 meninas violentadas a cada ano, sendo que 20 mil são negras, e na sua esmagadora maioria pobres e periféricas, atacadas por seus próprios familiares, amigos ou vizinhos.
A descoberta da gravidez geralmente ocorre após o crescimento da barriga, por terceiros e em ambiente escolar, uma vez que as vítimas não têm o entendimento necessário sobre as mudanças do próprio corpo ou são compelidas pelos seus algozes a ficarem em silêncio. Até que os trâmites do aborto legal sejam realizados, já se passaram 22 semanas e a menina já estaria, conforme o projeto, obrigada a enfrentar uma gestação cruel, perigosa e indesejada, equiparável à tortura pela ONU. Em última análise e sem hipocrisia, trata-se de forçar a gravidez decorrente de estupro em crianças e adolescentes.
Por estes e outros tantos motivos, ao votar, em 17 de junho, o Relatório sobre o PL 1904/2024, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil o classificou como inconstitucional, inconvencional e ilegal. Comparativamente às demais democracias do mundo, o Brasil passaria a ter uma das reprimendas mais duras para mulheres, aumentando a pena máxima de três para vinte anos de reclusão e ainda proporcionando, como abertamente vociferou o deputado Sóstenes, que meninas que sequer compreendem o que se passou em seus corpos, sejam submetidas a medidas socioeducativas.
Mas é outro fator que chama mais a atenção no PL 1904/2024, não à toa apelidado por alguns de “PL do Estuprador”. O aumento da reprimenda para casos de aborto decorrente de estupro sem que seja também pautada a discussão sobre a readequação de penas para o delito sexual traz mensagem simbólica de aceitação de violências contra mulheres, afinal, são somente estas que engravidam. A institucionalização de gravidezes indesejadas, violentando pela segunda vez os corpos e as almas de mulheres e meninas e obrigando-as a gerar frutos de estupro é um símbolo de força masculina e de perpetuação de desigualdades de gênero.
Em um Congresso Nacional formado 80% por homens brancos e de estratos sociais privilegiados, se está, mais uma vez, legislando com a intenção de se manter um status quo, e ainda retrocedendo em direitos tão duramente conquistados pelas mulheres ao longo dos anos. Da mesma forma, o § 2º acrescentado pelo projeto ao art. 124 do Código Penal, ao conceder, ao magistrado da causa, também majoritariamente homem branco e oriundo de classe social privilegiada, a possibilidade de mitigação ou exclusão da pena pelo aborto, confere-lhe demasiado poder de escolha sobre o destino de meninas e mulheres negras e pobres, vindas de realidade social muito diferente da sua e sobre a qual provavelmente não tem conhecimento.
O aborto necessário em casos de estupro e risco à vida da mãe, sem limitação temporal, é previsto no Código Penal desde 1940, aparecendo como terceira hipótese permissiva a anencefalia fetal por decisão do STF apenas em 2012. O caminho lógico para a necessária reparação histórica da mulher seria exatamente o oposto: conceder-lhe o poder de escolha sobre o próprio corpo, através da legalização do aborto, sem a interferência de questões religiosas ou morais e especialmente sem a falácia da proteção da sua própria vida ou da vida do feto. Não há, nestas iniciativas legislativas, qualquer preocupação genuína com a saúde ou com a integridade física da mulher, mesmo porque os números comprovam que abortos inseguros, praticados diante da proibição legal, resultam em centenas de mortes evitáveis.
É evidente que o recrudescimento de penas para qualquer delito não importa em redução daquela prática no meio social, embora o senso comum assim entenda. Em relação especificamente ao aborto, estudos sérios comprovam que há diversas outras formas de prevenção primária e secundária mais efetivas que a criminalização, tais como campanhas de educação sexual permanentes para crianças e adolescentes e a prevenção efetiva dos abusos e violências em contexto familiar, através da conscientização, suporte e acolhimento de meninas antes de serem estupradas.
Muito mais há a ser dito sobre tema tão impactante, e em reflexões que merecem tempo de maturação e ampla adesão social. Por ora, é urgente que se impeça o sucesso de mais um projeto perverso e que afronta toda e qualquer racionalidade jurídica ou de política criminal, servindo, antes de tudo e sem maiores constrangimentos, à perpetuação de violências contra as mulheres.
Helena Lahude Costa Franco, advogada criminalista e professora universitária
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