No meio da conversa, no Lamas, um café em Botafogo, no Rio de Janeiro, a poeta Claudia Roquette-Pinto citou um trecho de um poema do Manuel Bandeira. É um dos poemas que foram muito importantes na minha formação de poeta. Foi um dos tantos sustos e tantas surpresas que a leitura de Bandeira me trouxe e que me abriram a cabeça para toda uma outra possibilidade de ver e escrever poesia, isso com meus quinze anos.
O poema fala de um homem que vai pela rua com sua roupa de brim branco e é alvejado pela lama, fruto da passagem de um caminhão. Bandeira fala que o poema deve ser como a nódoa de lama na calça branca ou no paletó para dar no leitor satisfeito de si o desespero.
Claudia citou essa passagem como uma espécie de norte da sua e da poesia em geral, e eu curti em silêncio toda a evocação que esse poema desperta em mim. Ela também me presenteou com seu mais recente livro, Alma Corsária, lançado em 2022 pela editora 34, finalista dos prêmios Jabuti e Oceanos.
Referências a Bandeira estão presentes em alguns poemas, desde as mais explícitas, como no verso “Uma Pasárgada sintética”, ou em “Parada de Lucas”, em que o título e a epígrafe “Uns tomam éter, outros tomam cocaína./Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.” são tomados do Manuel, até as mais discretas, como a expressão “concha bivalve”, para nomear a vagina.
Outras leituras de outros autores também estão presentes, como Clarice Lispector, Walt Whitman, por exemplo, mostrando que uma poesia de alta qualidade também se faz no diálogo criativo.
E o que mais concorre para isso que chamei de alta qualidade na produção desse livro? Claudia Roquette-Pinto tem em Alma Corsária um conjunto de elementos que, combinados, resultam em poemas com ótima realização. Opta, na maioria dos textos, pelo verso livre. Mas, como sempre digo, o verso livre é livre de quê? Da métrica, ou seja, de uma contagem fixa ou recorrente de sílabas. Mas não é livre de construir, com outros recursos, uma outra estrutura estética. Assim, os versos dos poemas de Claudia se orientam por construções que privilegiam o corte, trazendo versos de diferentes tamanhos, próximos ora aos conjuntos de sentidos de uma fala, ora à entonação, ênfase e mesmo à solidão de uma palavra na linha. Recorre também com frequência à inserção de parênteses, que, ao mesmo tempo, ampliam o sentido do que vinha sendo dito e criam um ralentar do ritmo.
Outro recurso é a presença de imagens. São poemas muitas vezes cinematográficos. E tudo isso, todos esses competentes recursos estilísticos constroem uma visão das coisas a partir de um eu que, mesmo tentando se diluir, num esforço budista, afirma-se com força a cada poema.
A aventura meditativa, sincera e muitas vezes vivida no enredo dos textos, também pode ser ameaçada e interrompida “por alguma encrenca, na verdade”. A autoironia, o distanciamento de si mesmo, a consciência dos limites e das contradições convivem com uma pulsão de vida que quer se realizar no gozo do convívio com a natureza, com os prazeres do corpo, do outro e da solidão.
A distância e mesmo a impossibilidade das palavras darem conta de tudo que a poeta vê ou vive são motivos de poemas como este: “De que modo eu poderia/com a minha parca poesia/explicar o agapanto?/- se explicar fosse o intento.//Ou seria “recriá-lo? “Dá-lo/a ver”? “Nomeá-lo”/com palavras tão sem senso/de medida ou de tempo,/que provocassem espanto/tanto quanto//este agapanto//diante de mim agora,/explodindo em silêncio/os seus fogos de artifício/numa festa de ninguém.”
As palavras, como diz a poeta, “Que não se fundem,/nem fundam mais nada./Em alta velocidade,/batem contra o vidro/e caem, exaustas./Sigo dirigindo.”
Dizer que as palavras em alta velocidade batem contra o vidro é uma das tantas boas nódoas de lama no paletó branco de Alma Corsária.
Foto da Capa: Claudia Roquette-Pinto / Flip / Divulgação