Desde a pandemia, participo de um coletivo com mais quatro colegas da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, a APPOA. Chamamos esse coletivo de palavra aberta. Este é o nome da atividade que conduzimos, é a consigna que nos reúne a explorar e debater textos e, o mais difícil, o exercício necessário e urgente que tentamos sustentar diante de nós mesmos e com o público que nos acompanha.
O nome algumas vezes já se confundiu com chamadas religiosas na internet, como um lugar de sustentação bíblica. Algo semelhante acontecia quando trabalhei em uma clínica que se chamava Palavra Viva. Isso nos colocava em estado de chiste, mas, pensando a sério, essas intercorrências fazem pensar que talvez a psicanálise dispute a palavra com Deus. Nada contra ele, ela, elu… Sempre e quando possamos assegurar nossa laicidade que, no fundo, não faz mais do que respeitar a pluralidade de crenças e credos que recebemos na clínica. Lacan se ocupou um tanto do que chamou de o triunfo da religião.
Em nível discursivo, a ciência desassossega pelo caráter evanescente, sempre pendente de uma nova atualização que derroga a descoberta anterior. Por outro lado, a religião tem essa característica de emprestar sentido e conforto. Algo que, para muitos, serve para tornar uma vida mais palatável e quiçá, menos farmacológica. É, sem dúvida, uma saída. O problema é aquilo que Lacan chamou de “deus-lírio”, que tanto pode colocar a ciência a brincar de Deus, quanto à religião a se impor como solução única.
Na contramão, a psicanálise só encara a palavra na medida em que essa possa ser uma matéria plástica, esburacada, viva e sempre esquiva a um ponto final. E, diferente da ciência, costuma revirar o lixo atrás daquilo que, aparentemente, já não serve mais, como os nossos sonhos de ontem, de dez ou 20 anos atrás. Palavras que soam absurdas para muitos, mas nossas ferramentas de trabalho com as quais o convite à existência se dá pela abertura: mais uma palavra! E outra e outra… É assim que desarmamos suicídios e bombas, sem quase nunca precisar falar em suicídios e bombas.
O congelamento da palavra e, por conseguinte, a impossibilidade de escuta no social e no debate público, nos incita à paralisia da dialética e aos silenciamentos mais corrosivos. Desde que sem violência, a palavra tem o direito de ser polêmica, contraditória e, inclusive, dolorosa. É assim que a possibilidade de sustentar um debate público se estabelece. Palavra aberta não é palavra fácil, deglutível, calmante. É porosidade e inacabamento. É respiro e continuidade na travessia.
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Foto da Capa: Gerada por IA.