A ocupação das terras indígenas, no Brasil, ainda é uma questão muito polêmica e sensível, que faz com que interesses econômicos, ambientais, sociais, humanos e étnicos conflitem desde o descobrimento do Brasil. Sem a proteção jurídica esperada, ainda que o assunto tenha sido tratado na própria Constituição Federal (CF), em 1988, frequentemente os povos indígenas têm seus integrantes mortos, suas populações submetidas a toda forma de violência, ataques e genocídio, suas terras invadidas, seus recursos naturais extraídos, suas florestas, terras e mananciais hídricos destruídos, por garimpeiros, traficantes, grileiros e fazendeiros. Isso tudo acontece com pouquíssima proteção estatal e muita impunidade. Até mesmo a justiça, quando acontece, é lenta, e como dizia Ruy Barbosa, “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
Nem mesmo a Constituição Federal, de 1988, que dedica um capítulo inteiro para tratar dos direitos constitucionais dos indígenas conseguiu efetivamente reverter essa situação infame, em que pese ela literalmente determine que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
A CF inclusive detalhou o que são “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, definindo-as como as por eles “habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
E a CF tratou também sobre o usufruto das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes nessas terras, conferindo-as com exclusividade aos indígenas. Veja que ela determina que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivadas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
Além disso, a CF determinou que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. E para que não houvesse dúvida, proibiu “a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.
Como se não bastasse, e para garantir os direitos indígenas, estipulou que “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos grupos indígenas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé”.
Mas os interesses contrários à demarcação, na forma ampla prevista na CF, foram mais fortes e seus advogados e defensores sustentaram a tese de que não haveria um marco temporal definido, e que, portanto, ainda seria necessário o detalhamento por forma de lei.
Assim, em 2009, no segundo mandato do Presidente Lula, a Advocacia Geral de União (AGU), quando se discutiam os critérios para a demarcação da reserva “Raposa Serra do Sol”, no estado de Roraima, propôs o critério do “marco temporal”, que define que somente as terras que os povos indígenas ocupavam ou já disputavam, no dia da promulgação da CF, 05 de outubro de 1988, deveriam ser demarcadas, o que obviamente restringiu muito o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” empregado pelo legislador constitucional, que é realmente vago, impreciso e muito amplo.
Ocorre que em 2003, ou seja, há 20 anos, foi criada em outra terra uma reserva indígena, a chamada “Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ”, cuja parte do território demarcado vem sendo contestado e requerido pelo governo de Santa Catarina, em uma disputa judicial que, espera-se, seja julgada pelo Supremo Tribunal Federal agora na semana da publicação desse artigo. Essa decisão será muito importante e determinará se esse marco temporal é válido ou não, constitucional ou inconstitucional. De cara, essa decisão afetará mais de 80 casos semelhantes, e será aplicada em mais de 300 processos de demarcação das terras indígenas, que estão aguardando esse julgamento do STF para que possam ser decididos.
Todavia, na data de 30 de maio recente, a Câmara dos Deputados, aprovou um projeto de lei que define como marco temporal a ser utilizado o dia 08 de outubro de 1988, e que repetiu o critério defendido pela AGU, em 2009, ou seja, somente serão demarcadas como reservas, aquelas terras cujos territórios estavam ocupados ou já disputados pelos “povos originários”, palavra da moda, entendida agora como politicamente correta, e que atualmente se usa no lugar de “índios” ou “povos indígenas”.
O texto desse projeto é claramente decorrente do poder dos ruralistas e, se esse projeto de lei for promulgado, isso vai paralisar todos os processos de demarcação em andamento.
Ocorre que se o STF, principal guardião e intérprete da CF, considerar esse critério materialmente inconstitucional, essa lei já nascerá materialmente inconstitucional e isso fatalmente acabará para julgamento pelo STF “em algum lugar do futuro”. Cumpre esclarecer que a inconstitucionalidade material ocorre quando a lei contraria os princípios ou viola os direitos e garantias fundamentais assegurados pela CF.
Em suma, pela lentidão em que as coisas acontecem nesse país, me parece que esses conflitos continuarão por muito tempo, com todas as consequências nefastas que deles surgem para todo o país, e principalmente para os povos indígenas.
Não podemos esquecer que, se por um lado temos as questões referentes a defesa dos “povos originários”, de outro lado há uma estimativa da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) de que as terras indígenas compreendem 14 % (catorze por cento) de todo o território brasileiro. E que, se forem aprovados os processos em andamento, o território dos povos indígenas abrangeria 30% do território nacional. Se for correta a estimativa, isso seria realmente algo potencialmente prejudicial ao tão necessário desenvolvimento do país, que, teoricamente, levaria bem-estar social e econômico para todo o resto da população brasileira.
Escrevo esse artigo em 31 de maio e o julgamento desse tema pelo STF está previsto para o início de junho. Se ele efetivamente acontecer, será um dos mais importantes nos últimos anos, suas consequências sob o ponto de vista humano, ambiental e econômico serão imensas. A geografia econômica e social do país será afetada pela definição do “marco temporal” por muitos anos, e as consequências podem ser desastrosas para vários povos, não somente os indígenas. Que nossos ministros brilhem mais do que nunca ao decidir sobre a validade da tese do “marco temporal”, que a meu ver, viola frontalmente o disposto na CF, embora o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas”, pelas diversas interpretações que sugere, precise ser interpretado pelo STF.
Importante salientar que o fato de uma área ser “reserva indígena” não impede que ela seja explorada economicamente. Como mencionei acima, é possível a exploração econômica dos recursos naturais, o que indiretamente também favoreceria o país. Só que dessa vez os povos indígenas seriam beneficiados economicamente em detrimento dos ruralistas. Espero que o STF consiga interpretar a CF de uma forma que não seja prejudicial nem para os indígenas nem para os demais povos que habitam o Brasil, que encontre uma solução constitucional justa, que seria inclusive um bom sinalizador para o legislador.
Foto da Capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil