Na origem, o troll é uma criatura do folclore escandinavo. Como convém a uma criatura do folclore, suas representações mudam de conto para conto, o que inclui até mesmo a maneira como sua aparência física é descrita. Às vezes, é uma espécie de pequeno duende malfazejo de feições grotescas. Às vezes, um gigante de proporções mastodônticas. Às vezes, trolls são como espíritos da encruzilhada dedicados a complicar ou mesmo interromper os caminhos dos viajantes (como o nosso Saci, por exemplo). Às vezes, são representados como entidades que vivem embaixo de pontes e devoram os desavisados (sobre isso, aliás, Neil Gaiman, de quem já falei aqui neste espaço, escreveu um de seus mais belos contos, “A Ponte do Troll”, incluído em sua coletânea “Fumaça e Espelhos”. Se não leu, leia).
Em algum momento entre o fim dos anos 1980 e o início dos anos 1990, a expressão migrou da mitologia nórdica para os usuários de comunicação digital em rede. A história oral dos meios eletrônicos é meio obscura nesse sentido e várias fontes apresentam pontos de origem diferentes. Um ensaio de Adriana Amaral e Cláudia de Quadros data o primeiro uso de “troll” no contexto das redes em 8 de fevereiro de 1990, por exemplo, mas a fonte desse dado específico é a Wikipedia. O fato é que em algum momento a expressão “trolling the newbies”, ou “trollando os novatos”, começou a ganhar circulação em fóruns da Usenet em que usuários veteranos lançavam discussões absurdas para capturar a atenção dos “novatos”, os únicos que responderiam a sério a algo que os demais já sabiam de antemão ser uma total perda de tempo. Havia ali uma ideia, considerada por muitos à época positiva, de sanitizar o debate expondo quem não estava preparado para ele por não ter as qualificações necessárias. Mudam os tempos, mudam os costumes, pelo visto.
Ao longo das décadas seguintes, “trollar” foi se tornando um conceito disseminado para a prática de aplicar o que poderia ser definido como um “trote” nos interlocutores de discussões online. Foi ganhando volume, adeptos e feições próprias, até chegarmos à conformação atual do conceito, que costuma se referir a indivíduos que agem sozinhos ou em bando com o intuito de provocar e desestabilizar qualquer discussão ou troca de mensagens pelo puro espírito de fazer alguém passar por idiota “porque é divertido” (proposição resumida no termo “lulz”, gíria para as risadas que os provocadores dão ao tirar alguém do sério, ao induzir alguém ao erro ou simplesmente ao inviabilizar um diálogo que tenha começado com seriedade e até generosidade de propósitos).
O troll e a ética (ou falta dela)
O troll é um provocador cujo gozo combina narcisismo pueril (embora haja raríssimas exceções de “trollagens” elaboradas, de modo geral o repertório desse tipo de provocação ainda é aquele que todo mundo conheceu vindo do aluno mais idiota da terceira série do ensino fundamental que se achava muito mais esperto que os demais) e sadismo (expresso na alegria selvagem pelo tanto de sofrimento ou de indignação ele consegue provocar com seu comportamento que recusa as normas mínimas preestabelecidas para um diálogo).
A trollagem se tornou, com o tempo, mais do que uma ética (ou falta dela) online, e sim uma modalidade de ação que extravasou para amplas camadas da vida civil. A mais recente delas sendo a política, mas vamos chegar lá em algum momento (a menos que eu esteja trollando vocês, nos dias de hoje nunca se sabe).
Talvez porque o jornalismo seja uma prática que deveria ser séria e que muitas vezes se leva ainda mais a sério do que deveria ser, foi um dos campos mais visados pelo surgimento de algo que se poderia chamar de “trollagem como estética”. Programas de humor que emulam o formato de reportagens “sérias” mas com narrativas orquestradas ou pegadinhas preparadas se tornaram atração de horário nobre televisivo. Humoristas descabeçados que fazem da estupidez a sua “persona” cômica, como Diogo Defante, por exemplo, experimentaram sucesso a partir de um determinado momento com a tática de ludibriar transeuntes incautos com um pedido de entrevista para depois emendar alguma baboseira do mais profundo nonsense (aparentemente a graça disso vem do desconcerto do outro, ou seja, pura “trollagem”).
Na esteira da ascensão recente da extrema direita, vimos essa estratégia migrar do humor como caricatura do jornalismo para uma caricatura do jornalístico com intuito político. Figuras que primeiro se estabeleceram como celebridades online, mas que já tinham projetos políticos, como Arthur do Val, por exemplo, mostraram à ala mais tradicional da política que havia aí um campo a ser explorado se o momento fosse apropriado. Não sei se a ascensão da trollagem como ética tem alguma relação de causa ou de efeito com a redescoberta de Olavo de Carvalho como “guru” do pensamento conservador nacional, mas penso que as duas coisas têm uma vinculação por colateralidade, ao menos. Embora tivesse uma visão de mundo literalmente ancorada na Idade Média, Olavo era ele próprio um ideólogo da trollagem como método de debate, uma vez que sua “práxis”, passada adiante ao de seus pupilos, era negar ao interlocutor de quem se discorda um debate sério: ofensas gratuitas, palavrões desnecessários, declarações que escalavam o absurdo, tudo feito em nome da desestabilização do adversário.
Relativismo
Claro, nem todo mundo acha o fenômeno tão grave. Witney Phillips, em seu ensaio This Is Why We Can’t Have Nice Things, tem uma argumentação um pouco aparentada à da propaganda da antiga Tostines: o problema, segundo ela, não é que os trolls existam e se comportem como se comportam, mas que as suas estratégias espelham as do complexo midiático, mas sem o verniz de objetividade distante que o jornalismo tradicional, por exemplo, usaria como escudo. Alguns dos argumentos fazem sentido. Phillips compara a prática de fazer graça da tragédia alheia, incluindo o luto, como postagens agressivas ou provocativas em páginas de falecidos no Facebook transformadas em “memoriais”, com a cobertura da mídia sensacionalista de casos com vítimas. Ou com o próprio propósito do Facebook em transformar em instrumento de marketing de sua ferramenta a permanência virtual do perfil de um morto.
A questão é que Phillips parece falhar em perceber que a justificação do comportamento dos trolls com um relativismo cansativo não reconhece que, a esta altura da “trollagem” como fenômeno, a ação dessa gente descerebrada já criou raízes ela própria no mainstream, e por mais que possa haver paralelos éticos e conceituais entre uma coisa e outra, foi a incorporação da “práxis” da trollagem que transformou radicalmente o panorama político como o vemos hoje.
Na política
Candidatos que não respondem perguntas se não com ofensas. Candidatos que se negam a responder uma pergunta em um debate como se estivessem num esquete do Porta dos Fundos, dizendo que é o adversário que é feio e cara de melão. Candidatos que não se dignam sequer a tentar enrolar, como na política de antigamente, mas simplesmente arranjam uma desculpa em algum comportamento passado do outro lado para justificar sua própria incivilidade. Políticos eleitos que têm sua ação concentrada em redes sociais. Narrativas falsas criadas no computador de alguém com montagens toscas de quinta série circulando em grupos de zap e equivalentes para sequestrar a opinião pública, porque o tempo que se gasta para desmenti-las poderia ser usado para falar de outra coisa.
Esse é o novo panorama político, e é desolador. Porque agora a própria “zueira” algo sádica que era o combustível dos trolls deu lugar ao mais profundo cinismo com o qual os usuários de tais táticas simplesmente substituem o “lulz” pela agressividade programática com a qual Olavo de Carvalho ajudou a semear seus minions. Muitos dos que se lançam a esse tipo de prática talvez pareçam ridículos entre outras coisas porque apelam ao formato sem um entendimento muito claro do que ele deveria ser, já que fizeram carreira em modelos mais tradicionais de política. O problema é que, enquanto um grupo bem orquestrado no comando das ações sabe o que está fazendo e o porquê, muitos estão comprando suas provocações pelo valor de face e erodindo qualquer possibilidade de compartilhamento de realidade necessária para um debate.
Porque o troll é disruptivo (no único sentido que esta palavra deveria ter, a da ruptura violenta, não nesse novo significado positivo mais recente que a turma acéfala do marketing corporativo decidiu que ela tem), não há nenhuma possibilidade de construção a partir de sua ética ou de seu discurso. O que vale é tumultuar, interferir, desviar, tirar do prumo qualquer coisa “que se leve a sério”. A graça está em negar ao outro um mínimo consenso, desviar os caminhos, cansar quem tenta trazer as coisas de volta ao prumo em qualquer discussão para, no fim, dominar o parquinho vazio e repleto de escombros.
Boa sorte a todo mundo aí que acha que o futuro de um país se constrói dando risada para silenciar o outro…