A terceira, e inédita, posse de um mesmo presidente para o cargo mais alto da República foi recheada de emoção, discursos fortes que contaminaram a grande massa, concentrada nas cercarias da Praça dos Três Poderes, mas emocionou o próprio orador. Lula separou nos dois discursos, um no Congresso Nacional, na posse, e outro do Parlatório do Palácio do Planalto, quando fala ao povo, os recados que quis mandar, os compromissos de recuperação do Brasil e combate à fome e a miséria que acometem milhares de brasileiros. Mandou um duro aviso a seu antecessor. Lula, eleito com 50,9% dos votos válidos no segundo turno, contra 49,1% de Bolsonaro. Foi a primeira vez que um presidente perdeu a disputa pela reeleição no país.
Sobre Bolsonaro, falou que o comportamento dele na pandemia será apurado, julgado e, se for o caso, punido. Luiz Inácio Lula da Silva não teve quem lhe passasse a faixa, já que Jair Bolsonaro viajara na antevéspera da posse para os Estados Unidos e seu vice, Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul, convocou uma cadeia de rádio e televisão para prestar contas, ufanistas, do mandato recém-encerrado, e avisou que nem ele entregaria a faixa presidencial.
Talvez a solução buscada em reserva pela primeira-dama Rosangela da Silva, a Janja, e o fotógrafo oficial da Presidência e que acompanha Lula desde 2003, quando iniciou seu primeiro mandato, Ricardo Stuckert, tenha ficado maior do que os mentores imaginaram. E talvez tenha surpreendido também os não-transmissores de faixa. A reação foi grande. Depois na posse no Congresso, Lula dirige-se ao Palácio do Planalto para discursar do Parlatório. Aguardavam Lula na subida da rampa alguns brasileiros representativos da cidadania: uma criança, um indígena, um negro, uma mulher negra, um operário e uma pessoa com deficiência. Sim, e também a Resistência, cadela recolhida e adotada por Janja nas imediações do presídio onde estava o então namorado. Resistência é uma vira-lata, mas com sinais de pedigree. É um cão afável e, comportada, subiu a rampa com Lula.
Quem também trilhou e provocou emoções no público e no recém empossado presidente foram o cacique Raoni Metuktire, 93 anos, o menino negro Francisco, 10, a catadora Aline Sousa, 33, o metalúrgico Weslley Rodrigues, 56, o professor Murilo de Quadros Jesus, de 28, a cozinheira Jucimara Fausto dos Santos, 58, que assou pães para alimentar os integrantes da vigília às portas do presídio, o militante Flávio Pereira, 50, um dos organizadores do acampamento, e Ivan Baron, 35, jovem que teve uma paralisia cerebral causada por uma meningite na infância. Um retrato do Brasil: indígena, mulheres, pretas e pretos, uma criança, um portador de deficiência física.
Lula afagou, beijou e abraçou um a um. Começara, ali, a ficar emocionado. Quando chega ao Parlatório, começa por criticar o que chamou de “minoria violenta e antidemocrática”, embora tenha pregado união após receber a faixa presidencial. Prometeu governar para todos os brasileiros, inclusive para os que não votaram nele. Ele se dirigia a milhares de apoiadores que o cercavam na praça. De um lado, repetiu a promessa de governar para todos os brasileiros, não só para seus eleitores, e descartou revanchismo. Fez duras críticas à gestão Bolsonaro (usou palavras como “devastação”, “desmonte” e “destruição”) e atacou “a minoria violenta e antidemocrática” que “tentava censurar nossas cores e se apropriar do verde-amarelo”.
Lula agradeceu a militância por ter atuado na campanha “quando uma minoria violenta e antidemocrática tentava censurar nossas cores e se apropriar do verde-amarelo, que pertence a todo o povo brasileiro”.
Em seguida, ele defendeu a união social e acenou aos eleitores que votaram no ex-presidente Jair Bolsonaro no último pleito. “Quero me dirigir também aos que optaram por outros candidatos. Vou governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para quem votou em mim. Vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância”, declarou. Não existem dois brasis, completou.
Durante discurso, Lula chora e é ovacionado. A platéia grita: “Lula guerreiro do povo brasileiro”. Depois de pregar a união, Lula critica o que chamou de “minoria radicalizada que se recusa a viver num regime democrático”, numa referência a apoiadores radicais que acamparam em frente a quartéis militares para pedir um golpe das Forças Armadas contra a posse do petista. Diferentemente da declaração no Congresso, de caráter mais institucional, Lula fez uma fala voltada à população e à militância.
Referiu-se ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como um “golpe”, termo não usado por ele no Legislativo. O presidente colocou como meta de seu governo o combate à desigualdade. “Esta será a grande marca do nosso governo”. Ele convocou a população a se juntar em um “mutirão contra a desigualdade”.
– É urgente e necessária a formação de uma frente ampla contra a desigualdade, que envolva a sociedade como um todo.
Assim como no pronunciamento no Congresso Nacional, Lula fez dura crítica contra o governo Bolsonaro, em especial por causa da resposta à pandemia da Covid-19 Ele se referiu à gestão nacional como um “desgoverno” de “destruição nacional”.
– O que o povo brasileiro sofreu nestes últimos anos foi a lenta e progressiva construção de um genocídio, afirmou, enfático.
“Nesses últimos anos, vivemos, sem dúvida, um dos piores períodos da nossa história. Uma era de sombras, de incertezas e de muito sofrimento. Mas esse pesadelo chegou ao fim, pelo voto soberano, na eleição mais importante desde a redemocratização do país”, declarou. Em um dos momentos de críticas ao governo Bolsonaro, a multidão na Praça dos Três Poderes entoou gritos de “sem anistia!”
Lula desafiou até mesmo os que recomendavam trajeto em carro fechado, por recentes ameaças terroristas. Porém, negou-se a ficar distante do povo. Abraçou, acenou e atirou beijos enquanto ele, Janja, o vice Geraldo Alckmin e sua mulher, Lu Alckmin, agarram-se lado a lado no amplo banco traseiro do Rolls-Royce, segurando uma barra de aço para apoio ao andar de pé. Acompanhado por 18 batedores da Polícia Federal bem ao lado do carro, e por mais 24, correndo na faixa lateral da pista, o modelo Silver Wraith da marca é usado, há quase 70 anos, em ocasiões como posses presidenciais e eventos como o feriado da Independência, em 7 de Setembro.
No fim do dia, Lula disse que vai mudar o slogan que marcam seus discursos, em prol da democracia. Agora, segundo Lula, será “democracia sempre”.
Sem dizer adeus
O presidente Jair Bolsonaro realizou uma live no Palácio do Planalto na antevéspera da posse de seu adversário. Fez um balanço dos quatro anos e criticou a tentativa de ato terrorista em Brasília. Pediu que os apoiadores não tentassem impedir a posse do presidente eleito. O chefe do Executivo condenou a ação na capital federal. Uma bomba foi descoberta junto a um avião tanque, repleto de querosene de aviação, e se explodisse geraria consequências não mensuradas. Reclamou, de novo, que seus detratores dizem que “é tudo culpa de Bolsonaro”
No último fim de semana, um apoiador do presidente foi preso por ter pela bomba. Confessou-se “seguidor” de Bolsonaro. Dias depois, sem compartilhar a informação sequer com seu vice, Hamilton Mourão, Bolsonaro parte para Miami onde, supõe-se, deve ficar durante este mês. Quando volta, ninguém sabe. Não há qualquer informação oficial. Na saída do País, Bolsonaro comportou-se como é na essência: um parlamentar do baixo clero no Congresso, onde firmou sua duvidosa imagem pública.