Estava pensando em começar este texto falando sobre um livro que gosto muitíssimo: A Estranha Ideia de Família, da Julia da Rosa Simões, e falarei sobre ele, mas um pouco mais à frente. Não agora porque decidi ir direto ao ponto. O tema principal é a primeira vez em que uma mulher, nascida antes da redemocratização e educada sob a moral do século 20 ou da ditadura militar, fez sexo neste país machista. Eu poderia dizer a primeira noite. Tem aquele filme interessantíssimo sobre a primeira de um homem, dirigido pelo Mike Nichols, o da famosa Mrs. Robinson (Anne Bancroft), que seduz o rapaz que acabará se tornando seu genro, detalhe que não vem ao caso neste momento. Então, por que falar sobre? Porque talvez esse filme seja um bom ponto de referência para se pensar em como a primeira vez que um homem vai para a cama como uma mulher pode ser mais criativa que o contrário.
A primeira vez de uma mulher (dentro de uma relação consentida) costuma ser decepcionante, pouco memorável e bastante diferente da primeira vez em que ela sente, de verdade, prazer interagindo com outra pessoa. No universo dos orgasmos, incluindo os múltiplos, do corpo feminino, nem sempre corre tudo bem. A repressão em torno da sexualidade da mulher é tão voraz quanto o apetite que ela desperta (porque sou hétero, me refiro a relações heterossexuais). Repressão que vem tanto dos homens quanto das mulheres. Minha mãe, por exemplo, entendia a virgindade como uma virtude. Casou-se virgem com o meu pai porque ele gostava da ideia. Dezoito anos ela tinha e, da festa, foi direto para a noite de núpcias em que teve de vestir uma camisola branca como o vestido branco da cerimônia religiosa. Já minha avó, mãe da minha mãe, lá no final dos anos trinta, casou-se, também, na igreja, mas usando um vestido cor-de-rosa.
Cor-de-rosa? Pois é. Por que ela não usou o tradicional vestido branco? Tinha algo errado com ela? Algumas pessoas devem ter pensado que sim. Diversas pessoas, vida afora, a julgaram independente e ousada demais. Meu avô estava noivo de uma prima-irmã, os irmãos mais velhos dele já estavam casados com as outras primas quando a minha avó surgiu feito a Bete Balanço em sua vidinha, criando mal-estar na família. “Os parentes do teu avô nunca me trataram mal”, ela me disse várias vezes, e “nunca me trataram bem”, ela me disse tantas outras. A trataram com indiferença, quase desprezo, por ela não ter o nosso sangue e por ela não ser virgem. E ela não havia deixado de ser porque fora estuprada. Havia deixado de ser porque o meu avô a excitava tanto quanto ela a ele. E isso a sociedade e a família não aguentavam.
No livro A Estranha Ideia de Família, Julia da Rosa Simões fala sobre elas não tolerarem e empurrarem certos assuntos para debaixo do tapete até se transformarem em segredos. Muita gente tem dificuldade de falar sobre os parentes que desobedeceram à ordem dos bons costumes e se aborrece com os que gostam de resgatar histórias e dar voz aos antepassados. Alguns dos familiares da Simões, assim como alguns meus, demonstraram desconforto com essas perspectivas, argumentando em favor do silêncio, preferindo o silêncio à verdade, tratada apenas como uma possível versão.
“O silêncio foi imposto, ou um pacto de silêncio naturalmente se firmou: todos calaram aquele segredo, assim como continuaram calando outros. Pensavam o silêncio como intrínseco à noção de honra, mas esqueciam que segredos criam um ruído de fundo que pode ser sentido mesmo que nunca seja discutido”, escreve Simões, defendendo a legitimidade, com a qual concordo, de se falar.
Eu falo sobre a não virgindade da minha avó, e com orgulho, por dois motivos: primeiro, por ela ter compartilhado comigo o que ela entendia como um direito. Segundo, porque ela detestava hipocrisias. Minha avó casou usando um vestido cor-de-rosa e um véu que ia do altar à porta da igreja, porque a cor branca era para as puras. Eu me casei de vestido branco (por favor, não diga nada, meu passado me condena), fantasiada de noiva russa em homenagem a uma das literaturas que mais aprecio. Sem ser virgem, é óbvio, e mais, sem acreditar em Deus. Eu não acredito em vida eterna e menos ainda em punição eterna, mas, se elas existirem, o advogado do diabo dará um jeito de que o meu casamento seja lembrado no juízo final e, aí, adeus varanda no paraíso com vista para o inferno. Quem diria que a vida sexual de uma mulher pode render tanto? Eva, ora bolas, a primeira desvirginada.
A escritora Annie Ernaux, no livro Memória de Menina, comenta sobre a descrição dramática que Simone de Beauvoir, uma das mais conhecidas feministas do século passado, teria feito a respeito da perda da própria virgindade. De acordo com Beauvoir, a primeira penetração é sempre uma violação. Ernaux, apesar de ter iniciado sua vida sexual com um homem que virou as costas para ela, não se identifica com essa declaração. Eu também não me senti dessa forma na minha primeira vez. Além de já estar preparada para ela, eu a desejava. Meu descontentamento foi de outra natureza. A inabilidade e a falta de erotismo da outra parte, adolescente como eu, mas já com alguma experiência, me decepcionaram. De certa forma, meu corpo foi manipulado como o de uma boneca usada para ele se masturbar. Não tem mulher que tolere (ou tem) um homem com esse tipo mecânico e primitivo de desempenho. Eu, segundo os de personalidade controladora e moralistas, não deveria falar sobre sexo, ser tão crítica e tão exigente. Não deveria isso e aquilo. Mas eu, segundo eu mesma, não sou de concordar com tudo o que me dizem.
E por falar no que me dizem, as pessoas dizem muitas coisas que não são da conta delas. Não faz muito tempo, um homem me acusou de namoradeira. Não no sentido de traí-lo. Não tínhamos um compromisso. A fala veio no sentido de eu ser simpática com os homens e de ter facilidade para gostar deles. Eu gosto. Não gosto é do sistema patriarcal. A superioridade que ele impõe do gênero masculino sobre o meu é que me desagrada e ofende. A húbris do patriarcado me revolta. De algumas comunidades de mulheres, com suas definições do que é um sexo decente e tentativas de controlarem, em nome da amizade, umas às outras, também. Mas sobre isso escreverei, provavelmente, na semana que vem.
Todos os textos de Helena Terra estão AQUI.
Foto da Capa: Gerada por IA.