As nossas ideias são carregadas de afeto.
Nós somos apegados ao que pensamos da mesma forma como nos identificamos com quem nós somos. Há uma equivalência curiosa entre pensamento e identidade que está na base de muitos mal-entendidos e variadas discussões.
Neste sentido, mudar de opinião sobre algo, ou mesmo expandir a nossa reflexão, implica também uma reorganização afetiva e identitária, o que não é nada simples.
Quando entramos em um embate de ideias, tendemos a defender o que chamamos do “nosso ponto de vista”. Talvez não tanto porque queremos estar certos, mas porque deixar-se atravessar pelo outro seja entendido como uma derrota identitária. Estar errado, neste sentido, equivale a não ser.
Por isso que estudar é algo tão perigoso. Afinal, o que é estudar se não estar aberto à diferença? Quando nos debruçamos sobre um livro, estamos fazendo um pacto silencioso com o autor daquele texto: nos tornamos vulneráveis às suas propostas e, com isso, corremos o risco de questionamos as nossas certezas, de desmontarmos uma ideia que temos de nós mesmos.
Tanto assim, que algumas vezes nos sentimos mudados depois de lermos um livro ou de assistirmos a uma aula. Como se uma interpretação inteiramente nova do mundo se abrisse e, com isso, nós também estranhássemos o lugar desde onde líamos a realidade.
Esta é uma definição íntima que tenho do que significa inteligência: é inteligente aquele que se permite o risco da fragilização de sua identidade pelo contato com a diferença.
Narciso, por assim dizer, seria o mais ignorante dos heróis. Tão apegado ao reflexo de si espelhado no rio, ignora que existem tantas outras imagens possíveis que acaba por afogar-se em sua própria obtusidade.
Quando estudamos, estamos o tempo todo lidando com a nossa insuficiência, nossa apreensão parcial e enviesada do mundo. Estudar, assim, também significa suportar a frustração da não-coincidência entre o que pensamos e o que as coisas são.
Ou, mais ainda: estudar implica dar-se conta de que não há somente uma forma de ver a realidade, de que o nosso ponto de entrada nesse papo depende não só de nossas assim ditas capacidades cognitivas, mas também de nossa disponibilidade ao outro e à evidência de que o mundo não se resume à nossa forma de vê-lo.
O posicionamento político extremado é o exemplo mais bem acabado desta intrínseca relação entre pensar e ser: o pavor do conservador é o de que a multiplicidade de formas de viver signifique a extinção da sua própria identidade. O reacionário não suporta a diferença porque ela lhe fere intimamente. Talvez por isso ele seja tão levado a dar palpites e emitir julgamentos sobre os outros: justamente porque este outro se torna uma ameaça.
E isto me leva a uma segunda definição do que entendo por inteligência: a capacidade de suportar a complexidade do mundo, o que equivale a suportar também a inexistência de uma identidade última e absoluta. Nós somos seres fluidos e nossos pensamentos, na melhor das hipóteses, acompanham esta fluidez.
Infelizmente, vivemos em uma época em que presenciamos uma absurda dificuldade de complexificação do pensamento. Nas redes sociais, a nossa ágora contemporânea, a diferença e a multiplicidade são não só desestimuladas como também repudiadas. Aquele que propõe uma volta a mais no problema é tido como fraco ou como “passador de pano”, para usar os termos atuais.
A própria lógica do algoritmo das redes privilegia as opiniões contundentes e o pensamento enrijecido. Se alguém quiser que a sua voz chegue mais longe, o melhor caminho é fazer um vídeo no TikTok enumerando uma lista, e não um texto longo… onde mesmo ainda podemos escrever textos longos?
Quando a complexidade do mundo pode supostamente ser reduzida a uma lista (“5 dicas para saber se você é borderline”), é sinal de que não estamos indo num bom caminho, pelo menos se ainda quisermos nos ver como seres racionais e inteligentes.
A lógica do ser “a favor ou contra” algo somente explicita o quanto nossos pensamentos têm raízes em nossa identidade: quando nos dizemos favoráveis a algo, nos sentimos pertencentes a um grupo, a uma turma daqueles que pensam da mesma forma e, assim, são parecidos. Ser contra, por outro lado, é entendido como ser totalmente contra, completamente diferente.
É curioso percebermos como está lógica da recusa da mínima diferença – que Freud chamava de “narcisismos das pequenas diferenças” – opera dentro dos setores mais progressistas do espectro político. Parece haver uma disputa para saber quem é mais de esquerda. Novamente, aproximação entre o pensamento e a identidade, como se existisse uma forma transcendental de ser progressista.
O que se perde neste binarismo – como em todo binarismo, aliás – são todos os matizes intermediários possíveis. A questão é que seriam justamente estas as nuances que enriqueceriam o debate e permitiriam até mesmo que nós pudéssemos ter a experiência de sermos outros através daquilo que nos provoca estranhamento. Afinal, nós somos intimamente menos as certezas polarizadas e mais as zonas cinzentas da subjetividade: ao fim e ao cabo, o conflito é a nossa verdadeira identidade.
Entretanto, frente a estes espelhos contemporâneos que são as telas, nosso destino parece infelizmente ser o de narcisos digitais, tão apaixonados pela nossa própria imagem que nos deixamos afogar no algoritmo de nossas certezas.
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