Não era a primeira vez que um aluno me perguntava se eu acreditava em Deus. “Você quer saber se eu acredito que Deus existe ou se eu acredito no que Ele diz?” Embaraçado, respondeu: “Se Ele existe”. Contei-lhe então a seguinte estória.
Antigamente, ao passar por uma construção, ouvia-se o tilintar dos ferros, dos martelos, o chacoalhar das betoneiras, o arrastar das pás, o formigueiro humano: havia uma musicalidade com ritmo e harmonia próprios. Hoje, as construções são silenciosas, tudo parece que já vem pronto, basta encaixar; as construções são vestidas, de alto a baixo, com um véu sensual e pudico que mal deixa ver o corpo do edifício ainda desnudo.
Certa vez, em frente a uma construção aqui no Recife, vi do outro lado da rua, uma jovem escultural e de beleza perturbadora passar, em trajes sumaríssimos, em direção à praia. Observei que os peões se voltaram para ela e, aos poucos, a sinfonia dos martelos foi se calando até que se fez um silêncio… religioso. Diante de nossos olhos incrédulos, passava imperturbável uma demonstração empírica da existência de Deus, que a concebera por puro espírito de provocação! Eu conhecia a chamada Prova Ontológica de Santo Anselmo (“O Ser Perfeito existe necessariamente. Ora, Deus é o Ser Perfeito. Logo, Ele existe necessariamente”), mas nunca tinha visto a Prova Estética. Mas naquele dia, diante daquela construção, Ele resolveu, para os pobres e oprimidos desse mundo, oferecer uma comprovação de Sua existência e, mais que isto, uma demonstração de Sua inalcançável superioridade artística.
Aquela visão, seguida daquele silêncio, remetia cada um daqueles peões à consciência de sua inefável fragilidade, à imperfeição definitiva de suas existências, à percepção da matéria falível de que somos todos feitos. E enquanto eles mergulhavam em seus pensamentos para tentar extrair dali motivos para aceitar uma vida de marteladas imperfeitas no ferro ordinário que nos constitui, aquela jovem desapareceu na esquina, como um milagre ofertado apenas a quem, num rápido lampejo, percebe os sinais que lhes são enviados para se convencer da inutilidade da busca da perfeição. Ali, se fazia a experiência paradoxal da sensualidade religiosa, a Ideia platônica descia ao mundo perecível da contingência: a Teoria das Formas em carne (e que carne!), osso e roupa de banho…
Aos poucos, como se um maestro tivesse determinado o fim daquela pausa metafísica, os martelos, os guindastes, as serras, as pás retomaram suas partituras e Ela – que agora grafo com maiúscula- nunca mais foi vista.
Platão, na sua eternidade, vendo aquela cena, se disse baixinho: “Eu avisei que a visão da Ideia Absoluta cegava!”.
Não sei porque, aquele aluno nunca mais voltou às minhas aulas…
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Foto da Capa: Freepik/ Gerada por IA
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