Chega para todo mundo que tem compromisso de escrever com periodicidade certa: o bloqueio criativo. Clichês são clichês por um motivo, afinal. Depois da coluna da semana passada ser substituída de última hora pelo assunto do momento (a enchente no sul e a crise climática), o texto que estava quase pronto perdeu o sentido e o timing, e eu estou aqui há dois dias, intermitentemente parada diante do documento em branco com o cursor piscando com ar de deboche para mim.
Lá fora, a chuva voltou, e não consigo nem sequer aproveitar o barulhinho das gotas caindo, porque a perspectiva de mais enchentes e vítimas entristece o coração. Ao mesmo tempo, quero dar um respiro e tirar um pouco do peso dos últimos dias. Respirar para seguir. Lembrei então de uma das minhas atividades preferidas nos primeiros anos de vida da Lina, minha filha de 11 anos: anotar falas divertidas dela e dos amiguinhos.
Como já disse em uma coluna de novembro passado, a graça das falas das crianças não é mérito nosso ou de uma mente privilegiada dos nossos rebentos, mas do fato de que eles estão vendo o mundo pela primeira vez. No ano passado, compartilhei histórias dos três anos dela. Agora, vão algumas tiradas de 2018, quando a pequena (hoje nem tão pequena) tinha seis anos e estava aprendendo a escrever. Respiremos.
Hortografia
Mãe, Henrique devia começar com E, né? É Enrique, ué…
*
Mãe, né que cebola é com s?
*
Eu não paro de falar porque agora eu tô tagalera!
Garçonete desaforada
Brincando de restaurante:
– Quero uma pizza de calabresa com cebola.
– Não tem pizza. Só outras coisas, menos pizza.
– Uma cerveja, por favor.
– Cerveja de quê?
– Como assim? Cerveja tem sabor?
– Tem, claro. Temos de franGoesa, morango, cereja e abacaxi.
– E agora? O que vocês vão querer?
– Eu quero uma torta de chocolate…
– Não! Ainda não é hora de comer doce. Tem que pedir salgado.
Minimalista
– Mãe, sabe por que eu não botei o bracelete na festa? Porque eu já tava com muita coisa: brinco, piranhinha e flor no cabelo… Ia ficar demais…
It’s black, it’s white…
Hoje, teve sessão de fotos nossas antigas com a pequena. No fim do dia, ouço na sala ao lado:
– Pai, né que quando vocês eram pequenos o mundo era todo diferente? Era tudo preto e branco, como os teus cabelos.
Lojas Salê
– Mãe, tu já foi nesta salê?
– Que salê?
– Essa loja que tem num monte de lugar – ela diz, apontando para uma vitrine que anuncia sua liquidação em inglês castiço (sale).
Palavras pra que te quero
– Mãe, como se chama isso aqui? Esse risquinho? – questiona, apontando para a dobra do braço.
– Acho que é dobra do braço.
– Não pode. Tem que ter um nome. Fica na frente do cotovelo..
Dra. Lina
O pai, resfriado, está com um pouco de tosse. Eis que, antes de dormir, a pequena prescreve:
– Pai, toma uma colherada de melalegrão. Amanhã tu vai tá bonzinho…
POA Safári
Torcendo para pegar uma sinaleira (semáforo/sinal/farol) fechada para a carona descer do carro com mais tranquilidade, reclamo do fato de que o vermelho vira verde quando estamos nos aproximando.
– Que zebra!
Do banco de trás, a voz curiosa/ansiosa:
– Onde???
Pessoes
Conversa entre pai e filha:
– Pai, e se eu tivesse pinto e tu tivesse pepeca?
– Daí eu seria mulher, e tu, menino.
– Não! Eu seria uma menina com pinto e tu um homem com pepeca.
Fim da inocência
– Mãe, fala a verdade. Tu que é a fada do dente…
– Oi?
– Tu que é a fada do dente – repete ela com um meio sorriso meio nervoso.
– Por que tu acha isso?
– Me diz se é.
– O que tu acha?
– Eu acho que tu acordou no meio da noite, pegou o dente e deixou as figurinhas.
– …
– Pergunta aí no Google: “a fada do dente existe?”
Fotos: Acervo da autora