O Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus diz que a realidade é previamente sonhada. Podemos – e devemos, cada vez mais – criar ficção social para inspirar novas realidades, da mesma forma como criamos ficção científica. Julio Verne escreveu Da Terra à Lua, em 1865, a primeira história de exploração espacial, com precisão surpreendente na proposição científica. Desde então, desenvolvemos uma vasta obra literária e cinematográfica de ficção científica. Podemos, então, criar mais ficção social, como defende Yunus, o economista e banqueiro bengali, fundador e presidente do Grameen Bank, que oferece microcrédito para milhões de mulheres indianas com o objetivo de erradicar a pobreza no país. Ele foi agraciado com o Nobel da Paz em 2006.
Para finalizar este ano absurdo com suas novas guerras injustificáveis, dedico esse conto ao menininho Kong Nyong, que agonizou na longa guerra civil no Sudão. Assim como milhões de outras crianças, que são as principais vítimas dos desmandos do mundo adulto e sua crueldade. Ele foi fotografado em 1993 por Kevin Carter, que acabou se suicidando. (1) Não é exatamente um conto de ficção social, mas é um conto fantástico que eu sonharia realidade em um outro mundo, em outra dimensão.
O PEQUENO REI NAS TERRAS ALTAS
Para o menininho na foto Vulture
Kong morria de fome à beira de uma estrada nas imediações da sua pequena aldeia, no centro-leste da África. Os urubus espreitavam – ele não tinha mais forças para sustentar a cabeça protuberante sobre o tórax inchado, com pernas e braços espetados como gravetos numa bola. Mas Oxalá, amarrado ao pescoço da criança, não queria a morte de mais um inocente e ordenou à natureza um fenômeno naquele dezembro de 1993.
O furacão, que balouçava nas Bahamas, se deslocou repentinamente e avançou a 280km/h pelo Mediterrâneo. Enfraqueceu-se no Canal de Suez e chegou pelo Mar Vermelho na costa do Sudão a 160km/h. Kong já vergava ao solo ofendido quando a tempestade rodopiante arremessou abutres, misérias e violências pelos ares; e o carregou através do Índico e do Atlântico para um campo muito verde no sul da América do Sul.
O menino despertou bebendo com dificuldade o soro do leite da vaca Mimosa. Quando enfim acordou de todo, encontrou o olhar terno e preocupado da senhora Burmann – pensou que fosse um espírito divino, pois eram olhos azuis como o céu límpido um único dia vislumbrado pela abertura da ekaji (2) na sua aldeia.
Kong se recuperou lenta e progressivamente, enquanto Maria o velava na beira da cama, contando fábulas em tom de cantigas de ninar. Antes de dormir, ele recebia a visita de Pedro, que também vinha lhe embalar com histórias sobre o seu dia com os animais e o pomar. Alimentavam-lhe com um caldo cheiroso de cor abóbora. De sobremesa, ganhava miolo de pão caseiro com uma grossa camada de schimier de figo. Devorava com a ajuda de um copo grande de leite gordo. O casal Burmann se recolhia ao leito e orava, ainda mais fervorosamente, pois o anjinho negro caíra do céu como resposta às inumeráveis tentativas de concepção. Pediam a Deus, agora, que levasse para longe as sombras no olhar de seu filho.
Este dia chegou, quando o miúdo pôde, enfim, levantar da cama e sair para os Campos de Cima da Serra. Nem todos os fogos de artifício poderiam dar mais brilho aos olhinhos rastreando a volta. Naquele lugar não havia estradas poeirentas, nem cadáveres e destroços, nem mata queimada e fuligem. E as cabras magras do rebanho da sua aldeia, ali eram cobertas por tufos fofos de lã! Ele correu atrás das ovelhas gordinhas, mal dando razão ao delírio de sua visão. Trepou nas macieiras carregadas e ensaiou uma melodia de risos inéditos com as frutas que, no balançar frenético dos galhos, caíam no chão. Ajudou Pedro a tirar o leite da vaca, ansioso para beber o líquido espumoso que fluía nas suas mãozinhas para dentro do balde de alumínio.
O inverno avançou e, no lar dos Burmann, as noites gélidas transcorriam aquecidas por um infinito amor em português, que o pequenino aprendia ao pé do fogo ancestral na lareira de pedra. Uma manhã, ao espiar pela janela do quarto, Kong pensou que as nuvens houvessem descido todas do céu. Saiu da casa mudo de emoção e troteou no baio, na garupa de Maria, pela pequena propriedade coberta de neve. Noutro dia, os pais o levaram ao cânion do Monte Negro e ele reencontrou as divindades africanas da natureza no grito do gaviãozinho sobre o vale profundo.
Chegou, enfim, o domingo de levar Kong à missa, e Maria escolheu para o filho uma bata de lã que costurara, valendo-se da sua habilidade com o patchwork. Era de listras largas vermelhas, intercaladas por faixas de triângulos verdes, amarelos e azuis. Ficou lindo com o colar de contas branco leitoso, bem justinho no fino pescoço, que não arrebentara na viagem de furacão. Pedro dirigiu o jipe 40 km a oeste na pisoteada rota dos tropeiros e pararam frente à Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus. As torres góticas elevadas ao céu encontraram no íntimo da criança as raízes da árvore vertical cultuada na sua terra distante.
Kong assistiu toda a missa muito quieto, escutando ecos de outrora. No final, rezou junto com o sacerdote: Pai Nosso que estais no céu… perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, não nos deixai cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém. O pequeno rei comungou de mãos dadas com Maria: seu coração era livre do mal.
- A foto, o prêmio e o suicídio
- Cabana africana com pequena porta, onde os nativos dividem o espaço com os animais do rebanho.
Foto da Capa: Freepik