A história dos Campos da Redenção remonta ao século XIX e o parque recebeu este nome por um motivo muito significativo: foi o cenário para a libertação dos escravizados 4 anos antes da promulgação da Lei Áurea, oficialmente nomeado assim em 7 de setembro de 1884. Em 1935, quando foi realizada a exposição em homenagem ao centenário da Revolução Farroupilha, mudou de nome, mas não de personalidade.
Remodelado para a exposição, o parque começou a integrar-se à vida dos porto-alegrenses, tornando-se um local de encontros, esportes, namoros, manifestações, que, ao longo dos anos, transformaram-se na memória coletiva da cidade. A Redenção agradava crianças e adultos, com o minizoológico, com o orquidário e suas exposições, os pedalinhos e o Café do Lago – que contava com música ao vivo -, com os passeios de bicicletas, os piqueniques no gramado e até um eventual banho de piscina, construída onde hoje é o espelho d’água, para ser de uso público.
Quem não tem alguma lembrança do lugar? De vagar por seus recantos, matar aula de medicina, no então prédio do Instituto de Biociências, como esta que aqui escreve? Da liberdade de manifestação política, com encontro “nos arcos”? Das intervenções artísticas, algumas espontâneas, outras, resultado de um elaborado trabalho de criação pensado para aquele espaço? De passeios com os pais, os avós, os amigos, estes últimos encontrando-se no Bar Escaler? Dos domingos, passeando pelo brique da Redenção?
Esta alma que habita o parque está em perigo. Vem sofrendo ataques e o sucateamento programado é o instrumento utilizado pelo poder público. Com esta estratégia, foi-se o Café do Lago, em 2015, por falta de renovação do contrato de permissão, e o orquidário, que, devido aos danos ocasionados por um temporal somado à falta de manutenção, foi demolido pela Administração Municipal em 2018. O local onde antes existia o orquidário foi entregue a iniciativa privada e hoje é um “espaço gastronômico”, montado com contêiners e servindo refeições rápidas e bebidas. Ah, e o Auditório Araújo Vianna foi cercado, reduzindo drasticamente o tempo destinado ao uso público pelos artistas locais.
Recentemente, um tiro de misericórdia está sendo preparado: a concessão do parque à inciativa privada por 35 anos. O parque, que se recusa a ser chamado de Farroupilha, será oferecido à exploração comercial, com todas as limitações impostas aos seus frequentadores. Como forma de legitimar esta decisão, está sendo disponibilizada uma consulta pública, na qual são pedidas contribuições específicas a partir dos incontáveis documentos disponibilizados (já pensou se tivesse uma pergunta sobre a concordância ou não com a concessão?).
Tema que vem sendo muito comentado nos grupos do POA Inquieta, as justificativas para a privatização de espaços públicos, em sentido amplo, são conhecidas: qualificar o local [que sofreu a degradação programada] e a falta de recursos públicos para isso. Diz o prefeito: “É preciso separar a privatização da concessão. Os parques seguirão públicos, gratuitos e abertos à população”, em site da prefeitura. E, assim, pretende ficar longe do polêmico cercamento. Mas será mesmo?
Sabemos que o que diferencia estes dois processos é a venda do bem: enquanto a privatização, sentido estrito, envolve vender o bem público, na concessão, o Estado transfere a execução da atividade para o particular. Ou seja, a empresa é quem vai gerir o parque, de acordo com algumas condições impostas pelo Município, mas com intuito de obter lucro, de explorar economicamente o lugar. E este poder de decisão é que vai impor as limitações aos frequentadores da Redenção. Algumas questões: as manifestações, políticas ou artísticas, deverão ser autorizadas pelo gestor? Os vendedores ambulantes poderão dispor suas mercadorias livremente? Conforme consta nos documentos disponibilizados, alguns espaços podem ser cercados, para que ocorram eventos privados ou para algum tipo de comércio.
Não bastasse isso, há a insistência em fazer um estacionamento subterrâneo onde se localiza a pista atlética do “estádio” Ramiro Souto, desejo que, segundo as informações oficiais, é uma ordem ao ganhador da licitação. A construção desse empreendimento dentro de um parque é algo que atenta contra as funções das áreas urbanas e verdes, não só pelo trânsito de veículos aumentar na região, mas também pelo perigo de dano ao lençol freático que ali se localiza.
Atualmente, uma grande quantidade de automóveis já está estacionando no interior do parque, o que demonstra que o discurso de uso privativo pelo prefeito já está causando efeitos negativos ao patrimônio material e imaterial da Redenção. E isso é bem grave, pois mostra a face da descaracterização do local, que é pretendida pela Administração Municipal, como já aconteceu anteriormente.
Um exemplo é o Parque da Harmonia, que deixou de ser uma área essencialmente verde, de acesso livre à população, com exceção ao mês de setembro, para tornar-se um parque temático, de gosto duvidoso, com possibilidade de estruturas de até 25 metros de altura dentro do parque, além da roda gigante de 72 metros. Como primeira providência, o consórcio que ganhou a licitação cercou a parte em que os automóveis estacionavam e normalizou a situação, cobrando pela permanência ali.
É impressionante como são ignoradas a função e o conceito de parque, na perspectiva neoliberal de conceber a cidade como produto a ser consumido. Segundo a arquiteta e paisagista Rosa Kliass (1993)[1], os parques urbanos são espaços livres e públicos estruturados pela vegetação e dedicados ao lazer da população, incorporando práticas desportivas, culturais, de contemplação e de interação entre as pessoas. E, como resultado, promovem o bem-estar psíquico e físico das pessoas, o aumento da qualidade de vida e a qualidade ambiental urbana.
O Poder Público também tentou acabar com o patrimônio imaterial do Mercado Público recentemente. O nosso mercado seria “qualificado” para receber lojas nobres, e as manifestações culturais e religiosas precisariam de autorização para ocorrerem. A dinâmica que marca o lugar e a integração de práticas e de grupos seria perdida, assim como a sua ambiência integradora, visual e aromática. E foi exatamente alegando a proteção deste patrimônio cultural intangível, que o Ministério Público de Contas conseguiu suspender a tramitação do edital de concessão, às portas da abertura dos envelopes com as propostas.
Hoje, a Redenção é um espaço democrático, ondem convivem pessoas das mais variadas origens e classes sociais, pratica-se esportes de naturezas diversas, de forma solitária ou em grupos, a arte e a cultura são presenças constantes e pode-se nada fazer, apenas contemplar a belíssima paisagem, deitando na grama, tomando chimarrão ou comendo bergamotas ao sol, como manda a tradição gaúcha. Temos aí a alma de Porto Alegre e ela não tem preço.
Obs: Para saber mais sobre o movimento Preserva Redenção, siga no Instagram o @coletivopreservaredencao. Há um abaixo-assinado virtual, que pode ser acessado AQUI, ou na banquinha nos finais de semana.
*Jacqueline Custódio, advogada, ativista pelo Patrimônio Cultural, integrante do Coletivo Cais Cultural Já e do spin Arquitetura e Urbanismo.
[1] KLIASS, Rosa Grena. Os parques urbanos de São Paulo. São Paulo: Pini, 1993
Foto da Capa: Ricardo Stricher/PMPA