Desde 2016 sou voluntária no Prato Feito das Ruas, projeto que distribui aos sábados cerca de 1500 marmitas para pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social, debaixo do Viaduto da João Pessoa, no Centro Histórico de Porto Alegre. Neste tempo, a atividade que mais gostei de fazer foi conversar com as pessoas na fila, como uma espécie de “hostess”, dando as boas-vindas, ouvindo suas histórias, suas dúvidas e – muitas vezes – encaminhando seus problemas. Posso dizer que aprendi muita coisa com essa experiência. Lições valiosas que trouxe para minha vida. E, na fila, ouvi incontáveis histórias:
- A família que teve os empregos perdidos e o declínio financeiro que levou à necessidade de diminuir o que come, o que veste, até sair de casa e ir para rua.
- Daquele/a imigrante que o desemprego, a fome, a guerra (que pode ser a do tráfico) expulsou do seu local de origem (que pode ser um outro país), para uma nova cidade com renovadas esperanças, mas sem dinheiro algum, com a rua como destino certo.
- O motorista de caminhão que tomava rebite, que de início era controlado e apenas para manter as entregas em dia, se viciou em cocaína também, que o levou a perder o emprego, a família a casa e ir para rua, e hoje ainda está com o alcoolismo associado.
- A menina e o menino lgbtqiap+ que a família expulsou ainda criança de casa porque dizia que isso era coisa do demônio e que, sem ter para onde ir nem como se sustentar, precisou se tornar uma / um profissional do sexo.
- A família que morava num apartamento em um condomínio popular e que foi expulsa pela facção do tráfico que tomou o local. Sem ter para onde ir, foi para a rua.
- A senhora negra aposentada, já numa velhice avançada, viúva, sozinha, que teve a aposentadoria tomada por empréstimos compulsórios e ficou sem condições de sequer pagar por um quarto numa pensão.
- O rapaz com deficiência, com formação de nível básico, paraplégico, que recebe apenas o BCP (O Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade), mas não o suficiente para sobreviver pagando moradia, vestuário, alimentação diária, medicamentos (não fornecidos gratuitamente) etc.
- O gerente comercial com pós-graduação, que por conta do alcoolismo se separou da mulher e filhos e, a partir daí, “desceu a ladeira”, perdeu o emprego e foi parar nas ruas.
Todas essas são histórias reais compartilhadas em meio a fila ou fora dela porque essas pessoas precisavam ser escutadas, se sentir visíveis, acolhidas, sem serem julgadas. Como Padre Julio Lancelotti disse essa semana, “pessoas em situação de rua não são anjos nem demônios, são pessoas”, como eu e você.
Um em cada mil brasileiros está na rua.
Dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA essa semana, no texto para discussão produzido pelo pesquisador Marco Natalino a partir do Cadastro Único, revelam que em dez anos a população em situação de rua no Brasil cresceu 933%, chegando a mais de 227 mil pessoas, ou seja, pelo menos um em cada mil brasileiros vive nas ruas do país. E esse número com certeza é maior, pois se baseia nas pessoas que se registram no CadÚnico, enquanto sabemos que muitas que estão em situação de rua ainda não estão cadastradas ou, mesmo que cadastradas, evitam declarar que estão em situação de rua, e, portanto, invisíveis para as estatísticas.
Em Porto Alegre, também por meio do Cadastro Único, o coletivo Passa e Repassa, Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão sobre Políticas Públicas para a População de Rua da PUCRS e Unisinos, chegou ao número de 5.788 pessoas em situação de rua.
A melhor forma de se enriquecer é aprender
A seguir, apresentarei alguns dados deste estudo do IPEA que, se não apresenta a totalidade da população de rua do país, já nos dá um ótimo e profundo panorama da sua diversidade e dados para reflexão sobre quais caminhos seguir para compreender essa população invisibilizada e discriminada. Te convido para entender uma pouco mais sobre ela.
As três dimensões: exclusão econômica, vínculos sociais, saúde
Por este estudo, descobre-se que as principais causas determinantes para ir para a rua são os problemas com familiares e companheiros (47,3%); o desemprego (40,5%); o uso abusivo de álcool e outras drogas (30,4%) e a perda de moradia (26,1%).
Agrupando as justificativas apontadas pela população de rua, é possível entender que existem três dimensões que levam as pessoas para a rua, a dimensão econômica, quando conjugados os fatores “desemprego”, “perda de moradia” e “distância do local de trabalho”, eles são citados por 54% das pessoas. A dimensão saúde, pois os motivos “tratamento de saúde” e “uso abusivo de álcool e outras drogas”, por sua vez, quando conjugados, são citados por 32,5% dos cadastrados. E a dimensão de fragilização dos vínculos, quando 47,3% indicam “problemas com familiares e companheiros” e 4,8% a “ameaça/violência”.
A perda de moradia, o desemprego e as ameaças são motivos um pouco mais frequentes para situação de rua entre os negros do que entre os brancos. O uso abusivo de álcool e outras drogas, por sua vez, é uma razão menos frequente entre os negros (27%) do que entre os brancos (31%).
É importante observar que, pelos dados fornecidos, é comum que as três dimensões se manifestem conjuntamente, pois metade daqueles com motivações ligadas à saúde indicam também como motivo problemas familiares, e relatam motivações econômicas. Entre os com problemas familiares, 42% também tem motivações econômicas como causa manifesta da situação de rua, e 34% relatam motivos de saúde. Portanto, a situação é complexa e multifatorial.
O tempo de rua
A análise do estudo do IPEA, feito pelo pesquisador Marco Natalini, revela ainda que o tempo de permanência na rua está fortemente associado ao motivo para a situação de rua. Quanto maior o tempo de permanência na rua, maior a probabilidade de problemas com familiares e companheiros ser um dos principais motivos que levou a pessoa à situação de rua. O mesmo ocorre, e de forma ainda mais intensa, com os motivos de saúde (particularmente o uso abusivo de álcool e outras drogas). As razões econômicas, por sua vez, tais como o desemprego, estão associadas a episódios de rua de mais curta duração.
Além disso, importante registrar que o tempo de permanência nas ruas tende a ser maior para as pessoas negras e pardas em situação de rua: 12% estão na rua há mais de 10 anos, e 33% a menos de 6 meses; entre os brancos as frequências são, respectivamente, 10% e 36%.
A cor da pop rua
A grande maioria da população de rua se declara negra. Eles são 68% do total, sendo 51% pardos e 18% pretos. Aponta ainda que 0,5% se declara amarela e 0,2% indígena. Entre a população brasileira como um todo os negros somam 55,9% do total, sendo 45% pardos e 11% pretos (IBGE, 2023a). Os brancos somam 31%, enquanto na população brasileira eles são 43%.
Além da população nacional, 10.586 estrangeiros estão em situação de rua no Brasil, perfazendo 4,7% do total.
A idade
A pirâmide etária da população de rua no CadÚnico é concentrada numa faixa etária produtiva. Quase todos (94%) tem entre 18 e 64 anos. Entre estes, a maioria absoluta (57%) tem entre 30 e 49 anos. A idade média é de 41 anos.
O gênero
Em 2023, 87,5% da PSR se declara do sexo masculino. Entre as mulheres, uma em cada cinco vive com algum familiar; entre os homens, 95% vivem sozinhos.
A pop rua com deficiência
As pessoas com deficiência são 14% das pessoas em situação de rua, proporção superior à média nacional de 8,4% (IBGE, 2023b)
A educação formal
O número médio de anos de escolaridade entre os negros em situação de rua (6,7 anos) é menor que entre os brancos (7,4). Os indígenas apresentam a menor média entre todos os grupos (6,5). Entre os negros em situação de rua o analfabetismo é de 11%, e entre os brancos 7,3%.
É sempre na rua que se dorme?
Com relação aos locais de repouso, os negros em situação de rua tendem a utilizar mais as próprias ruas (60%, contra 54% dos brancos) e menos as unidades de acolhimento institucional (32%, contra 36% dos brancos) como local de repouso.
O racismo escancarado
Por tudo o que se observa no estudo, percebe-se que o racismo estrutural perpassa o perfil e o comportamento da população de rua brasileira em todos os aspectos, necessitando – talvez – de uma abordagem específica.
Ruas Visíveis
Essa semana assistimos o lançamento do Plano de Ação e Monitoramento Ruas Visíveis do Governo Federal, elaborado por determinação do Supremo Tribunal Federal. Ele dá ação prática e suporte para implantação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, lançada em 2009. Desde lá o nível de adesão à Política foi baixo, contando apenas com 18 municípios, seis estados e o Distrito Federal até este ano. E foi essa dificuldade que motivou a liminar proferida pelo STF para a construção deste Plano Ruas Visíveis, com seu quase R$1bi de dotação de verba.
Na sua cidade?
Se você deseja que algo seja feito em benefício da população de rua da sua cidade, converse com o seu Prefeito! Observe as políticas públicas realizadas pela Prefeitura. Importante: É necessário que a prefeitura institua o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a Pessoa em Situação de Rua do município, assim poderá ter acesso a programas e verbas específicos para atendimento da pop rua. Até hoje, aqui, o governo Sebastião Melo não instituiu este Comitê em Porto Alegre. É preciso projeto e investimento de qualidade, com participação cidadã.
Nós conseguiremos transformar histórias e “desrrualizar” vidas por meio de investimento nas próprias pessoas, de maneira consistente, contínua e com uma abordagem interdisciplinar. Conscientes de que pessoas em situação de rua são pessoas, como você e eu, protagonistas de si mesmas.
Foto da Capa: Marcelo Camargo | Agência Brasil