Enquanto Tom Cruise faz manobras impossíveis com seu avião supersônico e saboreia um dos maiores sucessos de sua carreira, donos de cinema de todo o mundo estão fazendo contas e sonhando que as nuvens carregadas de incertezas se dissipem em céu de brigadeiro.
Os exibidores que estampam o cartaz de Top Gun: Maverick, lógico, não têm do que reclamar enquanto o filme estiver faturando. A trepidante superprodução arrecadou, até meados de junho, US$ 769,6 milhões no mundo todo. Logo se posicionará como a segunda maior bilheteria de 2022, ultrapassando os US$ 770,3 milhões do novo Batman, mas dificilmente chegará aos US$ 935,2 milhões de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, o representante da família Marvel na temporada.
São números que, olhando o copo meio cheio, poderiam projetar um cenário de recuperação de um setor duramente prejudicado pela pandemia do coronavírus. Segundo dados de dezembro de 2021 da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas, foram registrados 300 fechamentos definitivos de salas no Brasil durante a pandemia. Em sua maioria, pequenos e médios exibidores, que, é reconhecido, já enfrentavam dificuldades em suas operações por, entre outras razões, mudanças de hábito do público que foram aceleradas e cristalizadas durante o confinamento.
Mas o olhar para o copo meio vazio pode revelar um quadro mais realista e preocupante. Historicamente, o mercado cinematográfico mantinha seu equilíbrio financeiro entre os títulos com grande apelo de público, com lançamentos sazonais, e os filmes pequenos e médios que sustentam o circuito comercial ao longo do ano mirando em diferentes perfis de espectador. A pandemia desequilibrou este arranjo desfigurando o sistema de produção e consumo de filmes. E com tal intensidade que, apontam especialistas, deverá estabelecer uma nova realidade para todo o mercado audiovisual. Os grandes tendem a preservar seu espaço, como já vinham fazendo, aliás, nos últimos anos. Não é novidade e nem caso isolado o cenário descrito agora em junho pelo crítico de cinema Luiz Carlos Merten em um shopping de São Paulo: nove salas e apenas dois títulos em exibição: Jurassic World: Domínio e Top Gun: Maverick.
Por sua vez, os pequenos e médios filmes tendem a lidar cada vez mais com o que se viu meses atrás nas (poucas) salas de Porto Alegre que passavam Madres Paralelas, de Pedro Almodóvar, para algumas testemunhas – era sabido que em breve o filme estrearia na Netflix, tela diante da qual o público adulto se acomoda e que, ao fim e ao cabo, em tempos bicudos, torna mais fácil a escolha entre ficar em casa com a mensalidade do serviço em dia ou somar na conta do programa o ingresso, a gasolina e o estacionamento, ou o ônibus, ou o Uber.
Desde antes da pandemia, gigantes do streaming como a Netflix vinham mostrando força na produção de cinema, atraindo diretores e estrelas de primeira linha para seus títulos. Buscavam não apenas reforçar seus catálogos, mas também angariar prestígio figurando nas mais importantes premiações do ramo. Tentaram ignorar a exibição dessas produções nos cinemas, para preservar sua exclusividade de lançamento. Mas tiveram de ceder para não ficar de fora do tapete vermelho, mesmo que na maioria dos casos a passagem pelo cinema tenha sido curta e protocolar, para justificar o convite para a festa, exemplo dos badalados Roma, de Alfonso Cuarón, e O Irlandês, de Martin Scorsese, entre outros tantos.
Se o cinema, não apenas a arte em si, mas também o espaço físico coletivo circunscrito à sala escura, encarou e resistiu à concorrência que viu nascer com a televisão e, depois, como o mercado de TV por assinatura e de consumo doméstico (VHS/DVD), a pandemia fez os novos oponentes somarem forças e cresceram graças a uma conjunção de fatores propiciada pela situação excepcional que o mundo viveu por cerca de dois anos: a oferta nunca antes vista de serviços para manter o público dentro de casa cimentou uma aparentemente irreversível mudança de hábito do espectador.
Com os cinemas fechados por conta das medidas sanitárias, os estúdios destinaram ao streaming lançamentos represados para amortecer prejuízos. Alguns poucos títulos, por sua presumida força de atração, foram reservados para chamar o público de volta quando as salas reabrissem, como abre-alas da volta à normalidade do mercado exibidor.
A estratégia funcionou com os blockbusters. Homem-Aranha – Sem volta para Casa, por exemplo, lançado no final de 2021, faturou quase US$ 2 bilhões. O desempenho é impressionante mesmo espelhado no quadro pré-pandemia, tanto que o filme ocupa a sexta posição entre as maiores bilheterias de todos os tempos (na tabela em dólares não corrigida pela inflação). Assim como Top Gun:Maverick, a mais recente aventura de James Bond, 007 – Sem Tempo para Morrer, também esperou na fila, após sucessivos adiamentos de estreia, e arrecadou US$ 774,1 milhões.
Se nessa ponta de cima da pirâmide milionária a situação atual sustenta a visão otimista de uma indústria recuperando-se com o apoio das grandes massas, a base dessa pirâmide se mostra abalada e comprometida. Mesmo com as incertezas que ainda não permitem comemorar o fim da ameaça da Covid-19, shows musicais e espetáculos teatrais, tirando a temperatura aqui de Porto Alegre, estão atraindo bastante gente e reaquecendo a economia destes mercados. Mas os cinemas que não exibem blockbusters estão às moscas, com exceção daqueles voltados a nichos cinéfilos, com programação especial assinada por curadores que acreditam que a sala escura ainda é o lugar ideal para experiências sensoriais únicas diante de um filme, tanto com os que são ignorados pelas plataformas de streaming quanto com aqueles que se mostram ainda mais gigantes na tela grande.
Pelo meio do caminho, parecem ter ficado os pequenos grandes dramas contemporâneos, as comédias românticas despretensiosas, os documentários instigantes e as cinematografias, digamos, periféricas. Este grupo tende a ter melhor sorte oferecendo-se ao garimpo do streaming do que atirados no circuito por poucos dias em horários ingratos. Importante destacar nesse processo que o custo do exibidor para manter uma sala aberta, com projetor acesso, ar-condicionado ligado, mais equipe, aluguel e custos com os distribuidores, é o mesmo com um, dez ou cem ingressos vendidos.
Assim que começou a se vislumbrar o cenário pós-pandêmico, diretores e produtores formaram convicção sobre os efeitos de dois anos de confinamento nos hábitos de um público que passou a contar com dezenas de plataformas de streaming. A serviços pioneiros como Netflix e Amazon somaram-se, entre outros, gigantes como Disney+ e HBO Max. Plataformas brasileiras também marcaram território na disputa por atenção oferecendo títulos de reconhecida qualidade, como a Belas Artes à La Carte.
A previsão, que parece se materializar, traz para o cinema um tanto da revolução digital do consumo que reformatou a indústria musical, praticamente eliminou a mídia física e fez despencar a leitura de jornais e revistas. A sala de cinema “sustentável” tende a ser cada vez mais o espaço para o chamado filme-evento, em que telefone celular, pipoca e conversa convivem sem culpa e indignação alheia, onde se chega carregado pelo boca a boca ou pelo efeito manada. Na outra ponta, sobreviverá firme e forte dentro do espírito cineclubista, como um templo de reverência e abrigo para amantes apaixonados e fiéis.