Como disse aqui na coluna anterior, passei um mês em Tramandaí, enquanto esperava a água baixar em Porto Alegre para poder voltar a minha casa. Lá, no meio das incertezas todas, das notícias pela internet, das fotos e vídeos enviados mostrando barcos passando pela minha rua que tinha virado um rio, ou o prolongamento, um afluente do Guaíba. Sem falar nas imagens da minha casa com água tomando todo o pátio e toda a frente. Como estaria lá dentro?
Então, no meio desse caos, surgiu pra ver no Youtube a live do Zeca Pagodinho. Assistimos no celular. O Zeca teve a iniciativa de chamar os seus amigos pra cantar uns sambas e chamar as pessoas a contribuírem com grana para ajudar o Rio Grande do Sul. A CUFA, Central Única das Favelas, se encarregaria de encaminhar o valor arrecadado para ações emergenciais entre os gaúchos e gaúchas vítimas desse infortúnio todo.
O formato foi de uma mesa, ou de umas mesas colocadas lado a lado, como numa festa em casa ou no galpão do bairro. Sem cerimônia, como é o estilo do anfitrião, os artistas convidados iam cantando, acompanhados de um timaço de músicos com violões, cavaquinho e percussão.
Alguém chamou de “a santa ceia”. Eu diria “a santa ceia do samba”. Entre os santos, santas e orixás na mesa: Zeca, Gil, Jorge Benjor, Alcione, Diogo Nogueira, Teresa Cristina, Xande de Pilares, Pretinho da Serrinha, Jorge Aragão e Arlindinho. Também disse no gogó o neto do Zeca, Noah.
Entre tantas belezas, a voz potente e a divisão jazzística que Alcione coloca no samba. A alegria e a humildade de Gilberto Gil fazendo coro e tocando violão de acompanhamento para todos. A reverência e a emoção dos artistas mais novos para com os mais velhos. A retribuição dessa reverência sem nenhum nariz empinado. Pelo contrário, a irmandade na arte, expressada através do canto coletivo.
Um momento que me alegrou muito foi quando o Zeca fazia pedidos ao Jorge Benjor. Eram pedidas músicas do lado menos conhecido e de grande refinamento do Benjor. Por exemplo, “As rosas eram todas amarelas”. Nessa canção, ele inicia citando, sem dar a fonte, sem para e dizer “olha, estou citando”, vários personagens de Dostoievski, o genial escritor russo: “o adolescente, o ofendido,/o jogador, o ladrão honrado/todos sabiam, mas ninguém falava/esperando a hora de dizer, sorrindo/que as rosas eram todas amarelas”.
A mesma música também cita Rilke, em Cartas a um jovem poeta: “bastava eu saber que poderei viver sem escrever/mas podendo fazê-lo quando quiser”.
Zeca pediu a música dizendo algo como “canta aquela do poeta, das rosas amarelas”. A doação pra mim, naquele meu momento de refugiado climático, foi o tempo carinhoso que cada um dos artistas dedicou.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube
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