Um pensamento recorrente em muitas de minhas noites e já se vão anos. Umedeço os lábios de minha mãe com uma gaze embebida em água. Últimos dias no hospital, antes de falecer. Sem poder ingerir líquidos, permitiam apenas que lhe molhasse a boca. Só o que eu podia oferecer. Desperto. Tenho sede.
Interminável é a morte, qualquer morte. Mas de nossas perdas mais próximas constrói-se o que nos resta, e nos mantém. A família de Rubens Paiva não teve nem essa dolorosa experiência, de tentar dar-lhe algum mínimo conforto. Nem antes, nem depois; em despedida.
“Ainda Estou Aqui” estreou nos cinemas de todo o Brasil no dia 7 de novembro de 2024. Muitas questões, que também ainda estão aqui, justificam manter bem viva a memória desses e daqueles outros tempos.
O filme, dirigido por Walter Salles, é baseado na obra homônima de Marcelo Rubens Paiva. É sobre perdas pessoais, mas que também são sociais, coletivas. Conta a história de Eunice Paiva, mãe de Marcelo e esposa do ex-deputado levado de casa para um “depoimento” pelos órgãos de repressão do regime militar e que nunca mais voltou.
Rubens Beyrodt Paiva foi sequestrado no dia 20 de janeiro de 1971. O corpo nunca foi encontrado e seu atestado de óbito só foi emitido em 1996. Depois de sancionada a Lei dos Desaparecidos, que reconheceu como mortos aqueles que “sumiram” no período mais obscuro da ditadura.
A receptividade e os aplausos, conquistados pelo filme no exterior, permitem apostar e desejar nessa torcida para que seja reconhecido também pelo Oscar 2025. Há razões que vão além da qualidade cinematográfica.
Flertes autoritários ao redor do mundo e nas nações ditas democráticas avolumam-se. O uso da violência e o abuso da mentira e da falsidade traduz-se em hipócrita invocação ao que seria “liberdade de expressão”.
Embora a frase bíblica “a verdade vos libertará” tenha sido sobejamente bradada nos últimos tempos, a verdade só liberta quando é de fato verdadeira. E a história oficial não é uma matéria muito afeita ao concreto e ao rigor dos fatos. O período da ditadura no Brasil ainda parece valer-se da opinião de uma senhora de bobes no cabelo, “uma época de desenvolvimento e segurança social, bastava ficar quietinho e se comportar bem”.
No filme, a atuação do elenco, sensível, toca fundo. A começar pelos intérpretes do casal Paiva, Fernanda Torres e Selton Mello. Culmina no, tão magistral quanto breve, desempenho de Fernanda Montenegro. Aos 95 anos, a síntese dramática pode ser apenas um olhar. Naquele olhar, de quem também sofreu ameaças à época, cabe o trágico inventário da infâmia e a redenção.
Sucinto e certeiro. Reforço a lembrança do miniconto do guatemalteco Augusto Monterroso. Ele se manifestou num período de exceção com um clássico de trinta e sete letras: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”.
Em “A resistível ascensão de Arturo Ui”, Bertolt Brecht ensina: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. O atentado à bomba em Brasília, no dia 13 de novembro de 2024, é mais um alerta.
A presente revelação de plano para assassinar, em dezembro de 2022, os recém-eleitos presidente e vice-presidente da República e o, então, presidente do Tribunal Superior Eleitoral causa real surpresa a alguém? Depois de tantas incitações à violência, glorificação à tortura? Repetidas manifestações oficiais de desprezo à vida? Escárnio ao sofrimento, deboches ao desespero de quem morria ou presenciava a morte por falta de ar? A nação reduzida a um cercadinho? – Ah, Batman, diria o Robin, Santa Inocência!
Perceptível a preocupação de alguns em tentar apontar defeitos e buscar minimizar o afluxo de público aos cinemas para assistir a “Ainda Estou Aqui”. Para esses, o sucesso estaria apenas baseado num fenômeno de ideologia. Apregoar rótulos de direita e esquerda é simplificação, serve para mascarar o verdadeiro embate entre barbárie e civilização.
Quando se tenta reduzir uma autêntica obra artística à classificação ideológica, perde-se a oportunidade de compreender melhor o que nos move enquanto seres “humanos”.
Empatia, em lugar de perversão. Possibilidade de crer em uma pátria-mãe gentil. Vá ao cinema e emocione-se com a saga dessa família brasileira. Ela é contada por quem sabe que a arte existe para iluminar as trevas e aplacar a sede que nenhum de nós deveria sentir.
Todos os textos de Fernando Neubarth estão AQUI.
Foto da Capa: Divulgação