Sim, Nós Fodemos: assim se chama um movimento que busca trazer a sexualidade e os direitos afetivos das pessoas com deficiência para o debate público em Portugal. O movimento é da década passada, ainda que falar sobre esse tema possa causar espanto ou incômodo para muitas pessoas mesmo nos dias de hoje.
Quando lhe perguntam “tinha que ser um nome desses”? Rui Machado, ativista dos direitos das pessoas com deficiência e um dos criadores do movimento, responde que “sim, tinha de ser assim”. Como ele explica, “não é um nome gratuito, é, sim, político-social, com a missão de trazer para o espaço público português um debate que, no nosso entendimento, tem sido, se não esquecido, pelo menos muitas vezes negligenciado.” E agrega: “Foi esta a forma que se revelou mais produtiva para atingir os principais objetivos que nos norteiam.”
E quais são os principais objetivos do movimento? Rui fala em três objetivos principais: primeiro, a normalização das relações afetivas e sexuais das pessoas com deficiência, independentemente de suas características ou diversidade funcional, sem estigmatizá-las como “heróis ou coitadinhos”. O segundo objetivo é a promoção da conscientização entre as pessoas com deficiência sobre seu direito à vida sexual e afetiva, um direito ainda não plenamente reconhecido, mas reivindicado por elas, com iniciativas como a organização “Sim, Nós Fodemos” fortalecendo esse processo. Por fim, a denúncia das barreiras enfrentadas por essas pessoas na busca por realização sexual e afetiva, incentivando o debate público sobre essas dificuldades. Aliás, eles evitam falar em pessoas com deficiência e utilizam a expressão pessoas com diversidade funcional e/ou neurodiversidade (PCDFN).
O movimento se esforça para conscientizar as próprias PCDFN sobre seu direito a uma vida sexual e afetiva plena. Muitas vezes, esses direitos são negligenciados ou desconhecidos, ao mesmo tempo que denuncia as dificuldades e barreiras que as PCDFN enfrentam na busca por realização sexual e afetiva.
Em Portugal, assim como no Brasil, a deficiência ainda é frequentemente encarada de forma negativa, influenciada por uma visão capacitista que percebe as pessoas com deficiência como doentes ou incapazes. Essa perspectiva impacta diretamente a forma como a sexualidade dessas pessoas é percebida e vivenciada, reforçando preconceitos e estereótipos que dificultam a inclusão social, a vivência plena da sexualidade e limitam as possibilidades afetivas das PCDFN.
Para discutir a questão, a primeira etapa seria definir o que é sexualidade, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) associa ao bem-estar físico, emocional, mental e social, definindo-a como “uma energia que nos motiva a encontrar amor, contato, ternura e intimidade; ela integra-se no modo como sentimos, movemos, tocamos e somos tocados; é ser sensual e, ao mesmo tempo, ser sexual. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, também influencia a nossa saúde física e mental”.
No excelente artigo “Sexualidade e Pessoas com Deficiência: Revisão Integrativa da Literatura”, publicado na Revista de Psicologia Política, seus autores iniciam a discussão destacando a importância de se reconhecer a própria existência da sexualidade das pessoas com deficiência, um tema pouco abordado e frequentemente visto de forma distorcida. Ainda hoje, prevalece no imaginário social a ideia de que a sexualidade dessas pessoas não é natural, o que reforça o estereótipo de que pessoas com deficiência, especialmente aquelas com deficiência intelectual, seriam assexuadas e incapazes de sentir desejo ou estabelecer relações sexuais.
Apesar de a sexualidade ser uma dimensão fundamental na vida de qualquer pessoa, o prazer sexual frequentemente é considerado irrelevante para pessoas com deficiência, limitando suas possibilidades de vivência, de bem-estar e de saúde física e mental. Esse contexto é reforçado por crenças de eterna infantilização das pessoas com deficiência, negando-lhes o direito a uma sexualidade adulta, já que são consideradas imaturas e de caráter infantil, desconsiderando que, ao crescerem, podem desfrutar de uma vida íntima. A infantilização acarreta práticas de superproteção familiar e em uma educação sexual incompleta ou até inexistente.
Uma das consequências dessas concepções é que a sexualidade das pessoas com deficiência é frequentemente associada a abuso, vitimização, controle e intervenções biomédicas. Em um estudo sobre como os profissionais de saúde mental no município do Rio de Janeiro percebem a sexualidade dos usuários desses serviços, Cláudio Gruber Mann e Simone Monteiro, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, identificaram uma visão centrada no controle. Essa abordagem reflete um cuidado excessivo por parte dos profissionais, justificado pela preocupação com a “segurança” dos usuários.
Mesmo nesses locais especializados, os próprios profissionais de saúde mental reconhecem dificuldades em abordar o tema. Embora considerem relevante tratar da sexualidade e da prevenção de ISTs/HIV, observam que essas questões raramente são discutidas em equipe ou incorporadas ao dia a dia do cuidado. Essa lacuna é atribuída à falta de formação específica, ao conhecimento limitado sobre o tema e à ausência de diretrizes institucionais claras que orientem sua abordagem.
Outro aspecto do preconceito contra a sexualidade das pessoas com deficiência, que também contribui para sua classificação como “anormal”, é a hipersexualização e a fetichização. Nessas situações, os corpos e práticas sexuais dessa população são tratados como fetiche. Cláudio Gruber Mann e Simone Monteiro observaram que esses preconceitos também afetam os profissionais dos serviços de saúde mental. Nesses ambientes, prevalece uma visão estigmatizante que associa o suposto “descontrole” da sexualidade dos usuários diretamente aos sintomas de seus transtornos, reforçando estereótipos capacitistas.
Rui Machado destaca que o rótulo de “hipersexualidade” é frequentemente atribuído a pessoas neurodivergentes ou neurodiversas. Ele afirma que essa é “a explicação mais fácil, mas também a mais errada” para justificar a busca por afeto, contato ou eventuais manifestações públicas de caráter sexual. Essa abordagem desconsidera que essas pessoas têm uma forma diferente de compreender o mundo, e que suas expressões nem sempre se alinham aos padrões do universo neurotípico, que, por sua vez, é rápido em julgar e muito lento em compreender pessoas e situações que fogem aos padrões da dita normalidade.
O debate sobre a sexualidade das pessoas com deficiência é crucial para desconstruir preconceitos, romper barreiras e garantir o direito a experimentar a intimidade e o afeto. Iniciativas como o movimento “Sim, Nós Fodemos” mostram a importância de trazer essas questões para o debate público e adulto, desafiando estigmas que ora infantilizam, ora hipersexualizam essa população. Como evidenciam os estudos sobre o tema, a sexualidade das pessoas com deficiência ainda é amplamente negligenciada, marcada por visões capacitistas e pela ausência de políticas públicas.
Ao mesmo tempo, essas pessoas enfrentam uma sociedade que rapidamente julga suas expressões e desejos sem considerar suas vivências singulares e a diversidade de suas experiências. O reconhecimento da sexualidade como parte integrante do bem-estar humano deve incluir todas as pessoas, independentemente de suas características ou diversidade funcional, celebrando-se a diversidade. Afinal, como diz o ativista Rui Machado: “todos os corpos podem dar e receber prazer. Enquanto se nascer sempre com coração, os afetos serão de todos quantos nasçam.”
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Foto da Capa: Reprodução do Facebook