Observar um fenômeno que não é novo sob perspectiva temporal mais larga pode trazer mais luzes ao debate. Entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000, tomou forma na televisão norte-americana uma festejada era de anos dourados. Um terceiro e mais encorpado ciclo, como definiu o jornalista Brett Martin no referencial Homens Difíceis, livro em que analisa os processos de criação de séries aclamadas como The Sopranos, Mad Men e Breaking Bad.
O primeiro ciclo, destaca o autor, foi marcado pelo desabrochar criativo dos tempos pioneiros da TV como veículo de massa, em meados dos anos 1950, quando o aspecto de rádio com imagens voltado ao noticiário e ao entretenimento familiar começou a se abrir para produções dramaturgicamente mais complexas e descoladas do teleteatro. O segundo se deu por um breve período nos anos 1980, já com a sombra da concorrência da TV por assinatura, com alguns criadores se puxando para tirar da TV a reputação de veículo de segunda linha para quem sonha em fazer cinema.
Junto com essa terceira fase um fenômeno cristalizou-se nos últimos 10 anos. Com o cinema se voltando cada vez mais para os blockbusters adolescentes e projetos de baixo risco comercial, e com os canais pagos (HBO, AMC, Showtime, entre outros) emplacando, sob aplausos da crítica e do público, atrações ricas em arquitetura narrativa, desenho de personagens, dilemas morais e atuação do elenco, entre outros elementos fundamentais da boa dramaturgia, muitos diretores e atores de prestígio se bandearam para a TV para fincar um pé numa espécie de porto seguro.
David Fincher, Gus Van Sant, Michael Mann, Martin Scorsese, Steven Soderbergh e Woody Allen foram alguns que associaram seus nomes a séries, minisséries e filmes que, com maior ou menor sucesso, chamaram a atenção apontaram um caminho possível para autores com dificuldades cada vez maiores e espaços cada vez mais reduzidos para exibir seus trabalhos para o cinema. O fluxo não arrefeceu. Reforçaram a lista outros diretores badalados internacionalmente, como o sul-coreano Park Chan-Wook, o mexicano Gullermo del Toro e o francês Olivier Assayas.
O citado olhar em perspectiva, contudo, ajuda a lembrar que esse flerte de grandes nomes do cinema com a televisão não é uma novidade, embora até então tenha ocorrido de forma mais pontual. Desde os anos 1950, nos EUA, nomes consagrados assinam produções para a TV. John Ford deu seus pitacos, Alfred Hitchcock comandou sua série de suspense, Sidney Lumet e Steven Spielberg escalaram nela os primeiros passos como diretores.
Tem mais gente graúda no time: o mestre sueco Ingmar Bergman concebeu para serem exibidas na TV, em capítulos, antes de apresentá-las nos cinemas, pelo menos duas obras-primas: Cenas de um Casamento e Fanny & Alexander. Bergman, aliás, com suas adaptações de clássicos teatrais para a TV sueca, tornou obsoleta para a dramaturgia, lá na década de 1960, a discussão sobre linguagem televisiva e linguagem cinematográfica como formas distintas e antagônicas de expressão artística. A lista de monumentos erguidos por gabaritados cineastas para a tela pequena ganha mais relevo com Berlin Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder, Decálogo, de Krzysztof Kieslowski, e Twin Peaks, de David Lynch.
Puxando a brasa para o Brasil, cabe destacar nomes que transitam muito bem entre os dois suportes, como Fernando Meirelles, Jorge Furtado, Guel Arraes, Cao Hamburguer, sem esquecer o saudoso Eduardo Coutinho, que realizou para o Globo Repórter documentários antológicos.
O que mudou de fato nesses anos foi a forma com que o público consome e interage com as centenas de opções que lhe são oferecidas a todo momento tanto no cinema quanto na televisão. A nova discussão, que já vinha de antes da pandemia e se iluminou com fechamento dos cinemas e a explosão dos serviços de streaming, envolve como se destacar na multidão e deixar sua marca autoral e também como fechar a conta. O cinema comercial convergiu para um tipo de espetáculo que precisa atrair milhões de espectadores para se pagar. Por sua vez, o modelo de produção de filmes e séries direto para as grandes plataformas, dependendo do caso, tira ou limita os direitos do criador sobre sua criação.
Em meio a essas transformações nos modos de produção e consumo, fica a impressão que essa fase de ouro arrefeceu ou está nos estertores. Parece que nada tão bom e impactante como The Sopranos, Mad Men e Breaking Bad surgiu nos últimos tempos. Ou existem mas não são descobertas ou alcançam a repercussão merecida na imensidão de ofertas. Talvez se precise de mais tempo para bater o martelo.