Se você não assistiu o filme “A Sociedade da Neve”, sugiro assistir antes de ler este texto, pois vou analisar a história real e o filme que concorre ao Oscar em 10 de março de 2024 como candidato a melhor filme internacional. Eu assisti e tive a oportunidade de visitar o “Museo Andes 1972” em Montevidéu, que conta muita coisa além do que aparece no filme. Para quem não conhece esta história, cabe informar que em 13 de outubro de 1972 houve um acidente de avião nos Andes que levava 45 pessoas a bordo, sendo 19 jovens da equipe amadora de rugby Old Christians, que haviam estudado no colégio católico Stella Maris. Eles viajavam acompanhados de alguns familiares e da tripulação num avião da Força Aérea do Uruguai, rumo a Santiago do Chile, onde iriam disputar uma partida. Alguns dos atletas já estavam cursando faculdade.
Este acidente foi contado inicialmente no livro “Alive: The Story of the Andes Survivors”, escrito em 1974 por Piers Paul Read, o qual subsidiou o filme “Alive” (Vivos), produzido em 1993. “A Sociedade da Neve” é uma nova versão desta história, agora baseada no livro com o mesmo título, de autoria de Pablo Vierci, com um enfoque na união entre os passageiros para enfrentar as adversidades, que não foram poucas.
Os acidentes aéreos geralmente são decorrentes de um somatório de variáveis adversas. No caso, as condições meteorológicas estavam inadequadas, os pilotos eram militares que não estavam acostumados a fazer esta rota e erraram o ponto onde deveriam cruzar a Cordilheira dos Andes. Ao se chocar com a cordilheira, o avião partiu e perdeu a cauda, causando a morte de 12 pessoas. Os sobreviventes socorrem os feridos e decidiram que deveriam racionar uma lata de chocolate e uma caixa de vinho encontrada entre a fuselagem. Ao ver um avião passando, acendeu-se a esperança de que em breve seriam resgatados e três pessoas comeram sozinho o chocolate. Uma discussão se estabeleceu no grupo e eles concordaram que somente com união e disciplina poderiam enfrentar as adversidades. Eles utilizam as capas dos assentos e costuram uma única coberta para proteger a todos. As soluções são sempre pensadas no coletivo.
Os dias se passaram e nada do resgate. A fome foi aumentando. Eles encontraram um rádio numa maleta e passaram a ouvir os noticiários que, no nono dia após o acidente é dada a notícia de que as buscas tinham sido finalizadas. Bate então o desespero nos sobreviventes. Os passageiros famintos intensificam o debate sobre consumir a única proteína que estava disponível, a carne dos corpos congelados dos amigos e familiares. Lembrando que eram jovens com formação numa escola tradicional católica e isto foi um trauma muito forte, até que todos cederam. Dois dos colegas se encarregaram de cortar os corpos e repartir a carne, sem identificá-los.
As condições terríveis de não ter mais esperança de resgate, de ver os companheiros irem morrendo, as temperaturas abaixo de zero e a fome aumentando, parecia que não teria como piorar, aí veio uma avalanche que invadiu a fuselagem e sufocou o grupo, matando mais oito pessoas. O grupo ficou algum tempo sobrevivendo com o que restou de oxigênio dentro do avião, coberto de neve. Depois do choque, conseguiram sair e voltaram a fazer novas tentativas para recuperar o rádio do avião, mas fracassaram. Já tinham passado dois meses e mais pessoas iam morrendo de fraqueza. Havia dois estudantes de medicina no grupo que prestavam socorros e que sabiam que nas condições que se encontravam não sobreviveriam por muito tempo.
Fernando Parrado, Roberto Canessa e Antonio Vizintín resolvem enfrentar a Cordilheira e sair em busca de socorro. Vizintín retorna para deixar mais alimentos para os outros dois, que caminham por dez dias por lugares que são considerados quase impossíveis de alguém passar naquelas condições. Eles continuam e encontram um camponês que avisa a polícia chilena e socorre os demais. Depois de 72 dias, foram 16 sobreviventes dos 45 que partiram de Montevidéu.
Inicialmente os jovens informaram que sobreviveram comendo os mantimentos que havia no avião, depois confessaram que praticaram canibalismo e então foram massacrados pela mídia. As manchetes dos jornais passaram de “Milagre” para críticas aos sobreviventes. Houve jornalistas que levantaram suspeitas de que eles teriam matado os companheiros para se alimentar. O foco deixou de ser a capacidade de organização e resiliência que tiveram para sobreviver, para um julgamento da conduta de pessoas que estavam entre colapsar numa das regiões mais hostis do planeta ou lutar pela vida.
Hoje Fernando Parrado faz palestras motivacionais pelo mundo e diz que a decisão de se alimentar de corpos congelados foi o momento de “tirar o verniz de ser civilizado”. Quanto à equipe, diz que surgiram líderes espontaneamente, e quando um líder morria, surgia outro líder e o grupo continuava unido. Ressalta Parrado: “Éramos uma grande equipe, ninguém era melhor do que ninguém”. Talvez seja isto que a vida insiste em nos ensinar no dia a dia e nem sempre aprendemos: somos uma grande equipe, ninguém é melhor do que ninguém!
Referências:
– Tem que tomar decisões, mesmo que tenha medo – diz sobrevivente da Tragédia dos Andes. Entrevista com Fernando Parrado.
– A Sociedade da Neve: conheça a história real por trás do filme da Netflix – CNN
– A Sociedade da Neve: onde estão os sobreviventes do acidente dos Andes – VEJA
– Alive – 1993 Ethan Hawke Movie Is Truly Terrifying Survival Horror – Bloody Disgusting
– Alive (1993) – Matthew Puddister – Medium
Foto da Capa: Grace Ribeiro | Divulgação