Heidegger, ao final do seu texto “Por que fico na Província?”, diz o seguinte:
“Escutei o que as montanhas, a floresta e as terras estavam dizendo, e fui ver um velho amigo meu, um agricultor de 75 anos. Ele leu sobre o convite de Berlim nos jornais. O que ele diria? Vagarosamente, ele fixou o firme olhar de seus claros olhos nos meus e, mantendo a boca levemente fechada, atenciosamente pôs sua mão fiel sobre o meu ombro. Nunca, nem por um momento, balançou a cabeça. E isso quis dizer: absolutamente não!”
Esse fragmento sintetiza a sua escolha. Perspicazmente, não a define, mas lhe concede forma a partir do olhar do outro sobre aquilo que estava em seu coração. O “não absolutamente” é tão firme quanto as rochas da Floresta Negra[1]. É corajoso, implica uma resolução — constrói-a.
Inicialmente, em termos do ego, precisamos fazer uma escolha — e fazemos. Projetar a pulsão de morte para fora é também uma ação da pulsão de vida, que dá suporte ao sujeito para sobreviver diante do caos. A capacidade de aglutinar elementos contrários é tardia, desenvolve-se mais adiante e precisará ser refinada em diversos momentos da vida.
As escolhas podem se tornar mais difíceis nesse cenário, pois já não contarão com o suporte dos sentimentos onipotentes. Trata-se de uma escolha difícil, com consequências; uma decisão que precisa ser ruminada, digerida e integrada ao sistema corpóreo. Os alicerces de ordem onipotente “diminuem” as consequências, pois as suspendem temporariamente.
Defesas maníacas também podem compor essa equação, especialmente quando a decisão envolve algo que se ama. O “não absolutamente” não pode agir rapidamente quando o pensamento extremado está em processo de desconstrução. Aqui, a premissa de Hamlet não se aplica. Não se trata de “ser ou não ser” — sempre se é. Sempre se é alguma coisa. Não é possível deixar de sê-lo. Já não é mais factível “pular a própria sombra”. Isso assusta.
O mundo se torna, de súbito, povoado pelo deus Pã[2], que salta aos nossos olhos pelas sendas que atravessamos. O mundo entra em oscilação, pois simbolicamente não atravessamos apenas o mundo, mas o mar — com suas ondulações, agitações, calmarias, momentos de sossego e tempestades.
Sentar-se no rochedo que canta[3] e sentir a brisa concede uma pausa — mas não suspende necessariamente o caos. As ondas ainda podem bater fortemente contra o rochedo; somos nós que apenas nos sentimos seguros. A escolha, nesse ponto, parece mais fácil — e talvez seja. Mas, geralmente, as escolhas só parecem mais fáceis quando nos sentimos protegidos.
É na lida com o mar que elas se mostram confusas, em sua natureza selvagem. Escolher é uma tarefa constante, e, como diria Sartre, “estamos condenados a ser livres”. Mesmo quando usamos de má-fé, ainda escolhemos — apenas “não ativamente”. E, nesse caso, talvez essa seja a pior escolha: atravessar o oceano numa embarcação sem jamais guiá-la conscientemente.
Essa é a tragédia — talvez a única tragédia que devemos, ao menos, tentar evitar.
[1] o local no qual o texto foi redigido.
[2] a ideia de susto, de pânico súbito, vem de sua mitologia.
[3] alusão ao livro Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo.
Ralf Diego Silva de Souza é psicólogo e professor universitário. Atualmente, é mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e possui especialização em Psicologia Hospitalar pela ESUDA. Dedica-se ao estudo aprofundado de temáticas concernentes à Psicanálise Kleiniana, Marxismo, Teoria Crítica e Escola de Frankfurt. ralfsouzapsi@gmail.com
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