Ao procurar escolas para matricular minha filha no primeiro ano do Ensino Fundamental, deparei-me com uma ótima proposta pedagógica, humanizada, bastante destacada no meio educacional. Eis que, observando no site da instituição a equipe de docentes, encontrei apenas um negro. Por ser uma escola não muito grande, imaginei que esta poderia ser uma “justificativa”, apesar de fraca. Eis que, ao clicar no botão que apresentava a equipe da escola, encontrei o time de negros e negras que esperava ver espalhados pelas tantas demais funções de trabalho, concentrados no setor de serviços gerais. Sem nenhum desmerecimento a esses trabalhadores e trabalhadoras tão importantes que mantém o asseio dos locais onde vivemos, trabalhamos, estudamos, não é possível para mim, homem negro, pai de uma menina negra, estudioso do tema do racismo, conceber que haja tamanha dificuldade para o mercado educacional em encontrar bons profissionais negros e negras para funções que não as históricas de serviçais. Tampouco, posso aceitar que homens e mulheres negros e negras sejam dignos apenas de tarefas subalternas. Comento isso porque, para além do óbvio ilustrado neste episódio, é urgente ampliar a reflexão sobre o tema da ocupação dos espaços de poder e de decisão por negros e negras.
Embora os negros e negras representem a maioria, 58%, da população brasileira, ocupam apenas 3% dos cargos de liderança, segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios (IBGE, 2022). Esta é uma evidência grave da falta de representatividade e de equidade no mundo do trabalho.
A ausência de pessoas negras em posições de liderança é um desafio persistente em todas áreas, decorrente dos racismos estrutural e institucional, o que acentua ainda os racismos social e econômico no país. Como bem destaca Cida Bento, em seu livro Pacto da Branquitude, “as estruturas institucionais reproduzem e perpetuam os padrões hegemônicos brancos, dificultando a ascensão de negros às esferas de poder e decisão”. É curioso como essas estruturas, mesmo as que se propõem a adotar uma postura mais humanizada, como a escola que mencionei, não escapam dos papéis de fortalecedoras desses padrões hegemônicos.
Ações afirmativas e reparatórias, como cotas raciais em universidades e órgãos públicos, foram fundamentais para ampliar o desenvolvimento e as perspectivas das comunidades negras. Inclusive, impulsionaram o mercado para profissionais negros. Talvez isso explique a presença daquele único docente negro entre mais de dez brancos. Mas as barreiras de entrada no mundo do trabalho e a falta de apoio ao desenvolvimento da carreira impedem um crescimento exponencial desses profissionais nas organizações. De modo geral, o Brasil cultiva um discurso meritocrata e não inclusivo, considerando a falta de equidade, o preconceito e a sistemática estrutural do racismo. Daí, poderíamos supor que a ausência de professores afro-brasileiros é culpa dos próprios, que não persistiram e não se capacitaram para disputar vagas de igual para igual com brancos e, portanto, foram sendo ultrapassados na ocupação de cargos de comando. O que é um conceito simplório e extremamente equivocado.
A verdade é que a comunidade negra, que já têm baixa representatividade nas organizações, sofre com a dificuldade de ascensão hierárquica e com a grande disparidade salarial. Ethos (2016), em sua publicação periódica Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e suas Ações Afirmativas, comparando os resultados das edições da pesquisa, identificou que, caso o ritmo se mantenha, a igualdade racial no ambiente de trabalho só será alcançada em 150 anos e a de gênero em 80 anos. Almeida (2019) fala que um dos efeitos significativos da falta de representatividade deveria propiciar a possibilidade da abertura de um espaço político para as reivindicações, ainda mais quando se mantém o vínculo dos representantes com um projeto político coletivo; e a luta pelo desmantelamento das narrativas discriminatórias que justificaram por tantos anos a nossa ausência em espaços de poder.
As organizações mais adiantadas quanto ao desenvolvimento humano e organizacional adotam programas internos para formar novas lideranças (Programas de Desenvolvimento Interno ou Programas de Desenvolvimento de Líderes – PDI´s e PDL´s), que passam por instrumentalizações com vistas a ocuparem cargos de comando. Ambos são altamente eficientes e formadores. O problema é que, normalmente, são implantados pelo viés meritocrático, irrelevante ao ingresso equitativo nessas organizações. Ou pecam pela ausência de recorte racial.
Urge, portanto, que as organizações públicas ou privadas ou qualquer instituição que se preze, reflita e adote medidas concretas para promover a equidade racial, não apenas por uma questão de justiça social, mas também por eficiência e prosperidade coletiva. Em especial, as entidades que se colocam como alternativas humanizadas. Os programas de desenvolvimento de lideranças são fundamentais, mas devem ser repensados e reformulados, incluindo ações específicas para formar e promover líderes negros, garantindo que todos tenham a oportunidade de contribuir plenamente e alcançar seu potencial máximo.
Nós, como sociedade, devemos nos comprometer a enfrentar estes desafios, valorizando os ambientes onde a diversidade é de fato uma realidade e onde todos tenham as mesmas oportunidades de ascensão e sucesso. Por óbvio, a dinâmica daquela escola não vai ao encontro do que quero para o processo educacional da minha filha. Portanto, não a matriculei na instituição. Esta foi a minha reação. Mas muito mais pode ser feito. Por isso, o meu trabalho, os meus estudos ganham ainda mais impulso. Não só por tratar-se da minha cor de pele, da cor da minha família e de tudo que envolve este fato. Mas para que possa contribuir para a construção de um futuro mais justo e inclusivo para todos os brasileiros, em especial, a maioria deles.
Até quando permitiremos que a sub-representação negra seja uma realidade em nosso país?
*Juliano Guedes é administrador de empresas, proprietário da PNE Consultoria de Projetos e Negócios Étnico-raciais e associado da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo.
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