Da Oficina Literária do Luiz Antonio de Assis Brasil, guardo bons haveres. A convivência com o generoso e didático professor, a proximidade com o escritor admirável e a sorte de uma turma de colegas, muitos para sempre amigos.
Final da década de 80, início dos anos 90, do século passado. Evito a palavra milênio para não parecer trágico. Uma experiência de felicidade plena para um jovem que crescera em tempos de exceção, quando qualquer encontro em torno de temas tão abertos quanto a literatura não somente parecia, mas gerava suspeitas nem sempre veladas.
Apesar de controvérsias, sem qualquer fundamento que se sustente, é certa a afirmativa que não se “formam” escritores, contudo a técnica literária pode ser ensinada e aprendida. Assim como acontece em outras artes, na pintura, na música, na dança, na arquitetura. A conquista se dá em cursos à semelhança dos laboratórios de texto; entre nós, “oficinas”. Essa experiência exitosa, a partir das que surgiram na década de 1940 nos Estados Unidos, foi sendo reproduzida em diversos países.
No Rio Grande do Sul, a Oficina de Criação Literária, ligada à Faculdade de Letras da PUCRS, foi instituída em 1985. Está para completar quarenta anos de atividade contínua. A “Oficina do Assis” – assim nós, privilegiados que por lá passamos, referimo-nos a ela – é exemplar. Mantém-se e serve de modelo a diversas outras.
Tive também a ventura de frequentar um curso de extensão experimental na UFRGS, promovido pelas professoras Tania Carvalhal e Lea Masina. Tania Carvalhal, de erudição elegante e sorriso inesquecível, deixou-nos cedo. A professora Lea, aposentada na universidade, mantém-se em atividade, sempre com disputa pela oportunidade de vagas em seus grupos de trabalho.
Hoje, as universidades têm, cada vez mais, em seus programas curriculares, disciplinas de escrita criativa, muito estimuladas por esse movimento.
É interessante que o termo “oficina literária” parece ter sido usado, em português, de forma inaugural, por ninguém menos que Machado de Assis. Não propriamente a acepção atual e numa crítica algo pesada a O Primo Basílio, de Eça de Queirós (Revista O Cruzeiro, 16 de abril de 1878). Escreve Machado, amainando um pouco a contundência: “Mas é homem de talento, transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária”. Machado enfatizava o valor do aprendizado da técnica.
Dentre tantos conceitos, um dos primeiros exercícios que se vivenciam numa oficina é o da aceitação da crítica. O criador precisa de humildade. Lembro a história de um professor de escultura que incentivava os novos alunos a criarem uma peça única, algo verdadeiramente magistral. Ao fim de um longo processo de elaboração, a ordem: – Joguem no chão! A partir daí, dos cacos, torna-se possível pensar em ajudar alguém a moldar-se como artista.
Independente de atingir ou não êxito no ofício, o certo é que o aprendizado de técnicas auxilia, no caso da literatura, a pelo menos ler melhor. Apreciar nuances, entrelinhas, metáforas, compreender associações, ironias. Talvez fosse o caso de cursos disseminados, em campanhas semelhantes às de vacinação, num programa de “saúde pública”. A conflagração que as redes sociais geram na sociedade atual poderia ser evitada se todos soubessem entender melhor o que leem.
Uma das melhores considerações sobre a importância de manifestar-se artisticamente, independente de fazer disso uma carreira, busco em um escritor que sempre apreciei, Kurt Vonnegut (1922-2007). Americano, de origem germânica, Vonnegut soube transitar numa mistura de ficção científica, sátira de costumes, antibelicismo e fina ironia. Em linguagem simples e acessível.
Em 2006, alunos de ensino médio de uma escola foram estimulados por uma professora a escrever em nome do colégio a um autor famoso, em busca de conselhos. O único a responder foi Kurt Vonnegut e segue aqui o que ele enviou:
“Cara Escola Xavier de Segundo Grau, senhorita Lockwood e senhoras Perin, McFeely, Batten, Maurer e Congiusta: Obrigado por suas cartas amigáveis. Vocês realmente sabem como animar um velho sujeito (84) em seus anos de crepúsculo. Eu não faço mais aparições públicas porque hoje pareço uma iguana. O que devo dizer a vocês, aliás, não levaria muito tempo. A saber: pratique qualquer tipo de arte, música, canto, dança, teatro, desenho, escultura, poesia, ficção, ensaios, reportagens, não importa se forem boas ou ruins, não para ganhar dinheiro ou fama, mas pela experiência transformadora, para saber o que há dentro de você e fazer sua alma crescer. Sério! Estou falando para começarem agora, façam arte e façam pelo resto de suas vidas. Faça um desenho bonito ou engraçado da senhorita Lockwood e entregue a ela. Dance em casa depois da escola, cante no chuveiro e siga por aí. Faça uma cara no purê de batatas. Finja que é o Conde Drácula. Eis uma tarefa para hoje à noite, e espero que a senhorita Lockwood os reprove se não a fizerem: escreva um poema de seis linhas, sobre qualquer coisa, mas rimado. Nenhum tênis é justo sem rede. Torne-o tão bom quanto você possivelmente pode. Mas não conte a ninguém o que está fazendo. Não mostre nem o recite para ninguém, nem para sua namorada, para seus pais, para ninguém, nem para a senhorita Lockwood. Ok? Rasgue-o em pedacinhos minúsculos e os separe em lixeiras que estejam amplamente separadas umas das outras. Você entenderá que já foi gloriosamente recompensado por seu poema. Você experimentou a transformação, aprendeu muito sobre o que há dentro de você e fez sua alma crescer. Deus abençoe a todos!”
Com sincera ousadia e o devido respeito ao Kurt, assino embaixo e dou fé.
Foto da Capa: Escritor Kurt Vonnegut / Divulgação
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