A guerra entre Israel e Hamas eclodiu com o ataque surpresa terrorista, um dia depois do anúncio do Prêmio Nobel da Paz, a Narges Mohammid, e a divulgação de Ailton Krenak (foto da capa) para a Academia Brasileira de Letras. E obscureceu nossos dias, nos fez mergulhar em uma guerra midiatizada, polarizada e radicalizada sem precedentes, impactando o mundo todo de forma prática e simbólica. A Guerra se tornou a principal pauta de notícias, debates, confronto de opiniões, monitoramento de posições e de relativização da morte. A guerra ainda existe, pois consegue justificar o poder de uns sobre os outros, suas visões e disputas. E decidir que a morte é a punição de quem não se entrega.
Desde o início de toda esta midiatização, me sinto violentada todos os dias com os relatos de guerra, com as mortes expostas, com os vídeos que invadiram a internet e as justificativas de que as vidas valem apenas para um dos lados. A desumanização me chocou de tal forma que me vi em conflito, ao não conseguir olhar tantas vidas perdidas por motivos geopolíticos, históricos, religiosos, e a falta de diálogo para estabelecimento de paz. E me chocou mais ainda ver as opiniões, textos e pessoas trazendo suas ancestralidades: falas ancestrais de seus parentes e líderes históricos para justificar apartheid e convicção de que a guerra é válida e justa.
No início deste maremoto online, se posicionar a favor da paz parecia um discurso fraco e romântico, frente a veemência da justificativa do contra-ataque. “Ah, mas… eles começaram.” “Olha o horror que fizeram. Nunca haviam atacado assim.”
E os contra relatos de um governo de extrema direita que vinha infernizando colonos, dia a dia, semeando o ódio. A bomba explodiu. Intencional ou não. Existe até teoria da conspiração rolando que o governo de Israel saberia de tudo antes, e deixou acontecer para justificar o que está acontecendo agora: um genocídio civil.
Eu não sou especialista em Geopolítica ou em Relações Internacionais, eu sou uma mulher, preta, brasileira, que até iniciou um pós-graduação em RI, e acabou abandonando, mas de genocídio eu entendo, pois a minha ancestralidade tem isto como marca há mais de 500 anos. E quando comecei a ver os discursos trazendo a noção de ancestralidade, tive um insight: o que queremos trazer da nossa ancestralidade para o futuro? Não é à toa que iniciei este texto refletindo sobre o apagamento da notícia de Ailton Krenak, como novo membro da Academia Brasileira de Letras.
Ailton Krenak, se você não conhece, é um líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta, escritor. Ailton confronta em sua obra e falas a lógica do capitalismo e do colonialismo, que é uma lógica de destruição. Na minha síntese: a destruição a tudo que se opõe a visão dominante, e estabelece a binaridade como princípio fundamental. Ou isto ou aquilo. Só para ilustrar o pensamento de Krenak: “Não podemos considerar a natureza um recurso. A natureza não é um recurso. Ela é o todo.” E aí se você entende, a profundidade do que ele diz, fica fácil entender como a lógica dominante constrói uma justificativa para a guerra neste pensamento binário.
A nossa ancestralidade não é única, é diversa desde o início, e possui visões diferentes, a partir de povos, etnias e localização global. Mas fico pensando no que acaba sendo essência em quase todas elas: a luta pela sobrevivência humana e seus conflitos. Se formos na raiz, as guerras foram criadas pelo ser humano como tecnologia para solucionar impasses. Elas existiram em todos os povos, por motivações diferentes como desentendimentos religiosos, interesses políticos, econômicos, territoriais, rivalidades étnicas. E elas sobrevivem no imaginário humano apesar de um novo mundo tecnológico e a IA batendo em nossas portas. Ela se recicla nos games, na cultura pop, nos filmes. O que tem impactos ainda maiores na sedimentação de uma visão desumanizada.
Hoje entrou um post no meu feed:
“Em Gaza são: 1417 pessoas que morreram desde o início dos ataques em Israel. Entre elas 447 crianças e 248 mulheres. (Ou seja, 695 vidas entre mulheres e crianças, 49%) Fonte: CNN”
A tecnologia da guerra retira a essência da vida. Então pessoas viram recursos humanos, a natureza vira recurso ambiental. E assim por diante, até termos entranhados os simbolismos de uma tecnologia ancestral da guerra que mata os inimigos. E inimigo não é humano. Humano é minha família. Meu pai, meus filhos, meu tio, a brasileira, meu povo … Os outros eu não enxergo como humanos, e sim como números.
Quando Ailton Krenak disserta sobre o Futuro Ancestral – ele aponta que não haverá futuro sem o resgate das cosmovisões sustentáveis do passado. E frisa que o homem branco (ou a lógica branca que afeta a todos nós, inclusive os não brancos) nos enfiou em um beco existencial e ecológico que parece não ter saída. E aí vem meu insight: Não podemos levar para o futuro a tecnologia da guerra, pois se assim o fizermos teremos a distopia. O fim da vida. Teremos que fazer escolhas se quisermos ter realmente um futuro. Porque a tecnologia ancestral da guerra é a justifica do tudo ou nada. E estamos vendo isto através dos celulares e da mídia. A Guerra não saiu de moda e tomou uma roupagem TECH da barbárie. Tempos difíceis para quem deseja a criação de uma nova tecnologia, a tecnologia da PAZ. Será que a IA dará conta disto? Porque nos humanos, estamos falhando miseravelmente.
Foto da Capa: Divulgação