Quando pequeno, fiz aulas de natação.
Como sempre fui alto, meu pediatra recomendava que eu praticasse algum esporte para reforçar a musculatura em torno da cervical. Dizia ele que isso preveniria que eu tivesse dores na região no futuro. Não deu certo, mas ok.
Em uma das aulas, lembro do professor falando para nunca cairmos “de prancha” na água, ou seja, para sempre nos jogarmos na piscina “furando” a água com as mãos ou com os pés, nunca com o corpo estirado. Assim, dizia ele, evitaríamos o choque violento da água.
Sempre achei curioso que a água, um elemento assim tão fluido, pudesse causar dano por impacto. Não seria de se esperar o contrário, afinal?
O que a minha cabeça infantil ignorava era que nem sempre o óbvio é o que acaba acontecendo. Eu não sabia que existia uma coisa chamada “tensão superficial”, essa força para cima que um corpo de água exerce. É esta tensão que permite que os objetos flutuem, por exemplo. Para aqueles que têm medo de água, a tensão superficial é uma amiga: basta não fazer nada para que se consiga boiar.
Mas para quem quiser mergulhar, aprendi isso com meu professor de natação, é preciso ter cuidado para como se vai entrar na água. Isso vale também para a vida como um todo.
É como se o mundo tivesse uma certa tensão superficial, uma força contrária a qualquer mudança. Gosto dessa imagem da tensão superficial porque ela traz a ideia de uma resistência muito fina, de uma película quase invisível, mas que está ali o tempo todo.
É sobre essa força contrária que muitos pacientes vêm me falar no consultório. Sobre a dificuldade de levantar da cama pela manhã, de se desprender da realidade e se deixar cair no sono, sobre a sensação de ficar procrastinando o trabalho que precisa ser entregue ou a conversa séria com alguém querido (ou não falamos mesmo de quebrar o silêncio?).
É curioso, porque essa tensão superficial também está aí em situações que não são necessariamente ruins ou difíceis. Não são poucos os que se entristecem, sem saber porquê, quando recebem a promoção tão esperada, quando finalmente são aprovados no concurso tão difícil ou quando por fim começam um relacionamento que há tempos almejavam. Mesmo nesses casos, onde se esperaria que tudo simplesmente fluísse, mesmo aí parece haver uma película a ser atravessada, uma bolha a ser estourada.
Existem algumas explicações pra isso. Uma delas é a de que nós temos essa tendência estranha a nos acostumarmos com qualquer condição, mesmo quando estamos insatisfeitos. A capacidade humana de se adequar a contextos desconfortáveis, e até mesmo tirar proveito disso, é impressionante. Às vezes, nós já sofremos há tanto tempo com uma repetição em nossa vida que encaramos a frustração como a nossa própria casa, nos sentimos acolhidos em nosso próprio sofrimento.
Neste sentido, começar algo implica também fazer o luto da condição anterior, demanda que alguém passe a contar a sua história a partir de um outro lugar. E isso nem sempre é algo simples, tão apaixonados que somos pelas tragédias que nos constituíram.
Até porque muitas vezes o sofrimento tem uma função importante na vida. É o caso, por exemplo, daqueles que foram feridos por alguém na infância e que fazem da sua dor no presente uma denúncia das ofensas sofridas no passado. Como se mostrassem para todos o quanto o seu fracasso ou sua inibição é fruto da história que lhes trouxe até aqui, do mal que algum outro produziu. Nestes casos, acontece como que um pedido de que os culpados sejam punidos, ou que pelo menos a violência seja reconhecida.
Nestas situações, atravessar a tal tensão superficial e poder levar adiante a vida seria o equivalente a perdoar aqueles que ofenderam. Infelizmente, muitas pessoas não conseguem desmontar esta associação e acabam fazendo de suas vidas uma ilustração em negativo de tudo o que poderiam ter sido ou feito.
Outra forma de tensão superficial é a da impossibilidade de agir por se estar excessivamente tomado por uma imagem idealizada do que seria o ato realizado.
É o que acontece, por exemplo quando nos vemos frente à página em branco ou quando temos que entregar um trabalho de conclusão de curso, uma dissertação ou uma tese. É comum termos em mente como gostaríamos que o nosso texto ficasse, sabemos claramente, no pensamento, como seria a forma ideal do que temos a escrever. Entretanto, na hora de realmente botar a mão na massa, temos que lidar com o fato de que nunca estaremos à altura do que imaginávamos, de que nós somos muito melhores na imaginação do que na ação.
Romper com a tensão superficial, nestes casos, significa poder se haver com essa insuficiência, com a inelutável distância entre intenção e ato. E, com isso, fazer o luto da ação ideal, do texto perfeito, do trabalho irretocável. O que implica também podermos nos conformar com a ideia de que não somos assim tão bons quanto gostaríamos de ser.
Há algo de absurdamente humano na lida cotidiana com a nossa própria precariedade, em trabalhar o mundo a partir não só de nossa potência, mas também fazendo do fragmento uma ferramenta certeira para atravessar a tensão superficial.
Muitas vezes, a dificuldade de fazer ato da intenção não se trata de uma insuficiência, mas sim da forma como nos jogamos. Para realmente furar a tensão superficial do mundo, por vezes, o melhor é lembrar da sugestão do meu professor de natação e atravessar a força contrária entrando na água com as mãos ou os pés primeiro. Caso contrário, o risco do impacto pode ser grande demais.
Nem toda quebra precisa ser um escândalo.
Foto da Capa: Lucas Allmann / Pexels