Estamos com água até o pescoço e sem água para beber. Nossos corpos sofrem com a torrente de água lamacenta vinda de todos os lados, de cima e de baixo e, mesmo no calor de 30 graus, tremíamos de frio. Trememos de medo e de tristeza. É o que está acontecendo em minha terra natal, o Rio Grande do Sul.
Nossas cidades foram invadidas pelos rios, que não conseguem mais dar vazão a chuvas severas, pois o solo foi devastado. São 200 anos de desmatamento de nossas florestas de araucárias e exploração irracional e desmedida do solo, que transformaram os rios em armas letais. “Essas terras hoje alagadas eram ocupadas, pelo menos há seis mil anos, por populações de origem linguística jê – um magnífico território com águas abundantes, vegetação milenar exuberante e fauna diversificada com variedade de aves, peixes e mamíferos”.[i]
Essa tragédia que agora nos assola é profética e profundamente simbólica. Profética pois escancara e (re)confirma tudo o que já sabemos, há décadas, sobre a urgência climática. Simbólica porque é água, origem da vida, a composição de mais de 70% dos nossos corpos, o elemento mais feminino de todos os elementos, que nos sintoniza e equilibra. Água dos rios, que sempre nos serviram generosamente, nos acolheram, permitiram que desenvolvêssemos civilizações às suas margens. Água que trocamos com o ambiente, de nosso interior para o exterior, de fora pra dentro quando mergulhamos nos rios e nos oceanos, nos banhos de chuva e até com a umidade do ar. Água que nos remete ao útero, que nos protege, que nos religa ao cosmos. Essa mesma água, que nos inunda de amor e compreensão, desvirtuada, nos inundou de horror e espanto.
Nossos corpos tão sensíveis, da mesma forma que absorvem a beleza e a força da energia pura da natureza, absorvem também a energia farpada de uma tragédia coletiva como a que estamos vivendo. Nossos corpos sofrem uns com as dores dos outros, de todos os corpos, humanos, animais, vegetais, líquidos. A água sofre com essa aberração em que foi transformada. Justo a água, tão dadivosa. É hora de mudar tudo isso. De devolver a dignidade à água. De respeitar os corpos que somos e todos os corpos com os quais trocamos.
Enfraquecemos a percepção do corpo ao nos considerarmos senhores da natureza, nos deslocando do Todo para um topo fantasiado no juízo de domínio. Rompemos com o mundo natural e edificamos nossa desgraça ao adotarmos um modo de vida centrado na agricultura extensiva, no espaço urbano, com predominância do sistema industrial e no ambiente digital com seus códigos. As consequências jorram em cascata, do desenho de fronteiras e suas ininterruptas guerras ao dinheiro globalizado em um mundo líquido – como definiu magistralmente o sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman – e a catástrofe climática, com o planeta sendo exaurido.
Fomos reduzindo nosso corpo a uma massa de carne inconsciente, a ser satisfeita no raso, através do que há de mais básico nos sentidos. Determinamos, assim, um estilo de vida hedonista, cada vez mais centrado no consumo, no hiperconsumo – não só material com sua profusão de mercadorias, comida, bebida, etc., mas também psicológico – ao qual entregamo-nos desvairada e ansiosamente. Criamos, ignorante e tragicamente, a solidão, o desamparo, o vazio que nos angustia ao último grau de nossos sentimentos, pois derivado de uma ruptura impossível, de uma agressão à qualidade de seres vivos.
Não somos “consumidores”, somos filhos das estrelas, corpos de grandiosidade singular, seres da natureza. Somos corpos com várias instâncias coexistindo, um habitat cósmico e terreno, ao ponto de a ciência determinar que apenas 10% se constitui particularmente humano. Só em bactérias e fungos são mais de 100 trilhões que nos habitam, e ainda um manancial de água com seus íons e gases, o ferro no sangue, o cálcio nos ossos – desde o infinitamente pequeno dentro de nós, a composição dos mesmos elementos e do mesmo mistério e força do espaço profundo.
Somos energia que move a carne. E mesmo que nosso corpo nasça e morra, não somos apenas um corpo. Isso não é uma questão religiosa, pois mesmo que sejamos vida neste planeta enquanto um corpo, é em nós que flui a energia do universo. Em todos os corpos flui essa energia, só que nós, humanos, temos consciência. Nossa responsabilidade é maior.
Como diz o astrofísico Marcelo Gleiser, “Somos a voz do Universo”. O homem primeiro existe, depois se define; portanto, o homem existe e é livre para se construir por suas escolhas – “A existência precede a essência”, cunhou o filósofo Jean-Paul Sartre. Vamos tomar posse de nosso corpo, com sua água magnífica, com todo o seu esplendor e potencial para nos libertarmos da tirania de um Sistema que já se esgotou há muito. Não somos escravos, somos deuses. Como deuses nos é digno viver, em comunhão com a Terra e o Universo.
[i] Há duzentos anos… (por Maria da Glória Lopes Kopp). Não por coincidência, o mapa da enchente é o mesmo da região originária das matas de araucária no Rio Grande do Sul.
Vera Moreira foi repórter e editora no Diário do Sul e Zero Hora, em Porto Alegre, e Estadão, Jornal da Tarde e Dinheiro Vivo (Jornal GGN hoje), em São Paulo. Foi agente literária de Sergio Faraco, com quem organizou o livro Decálogo do perfeito contista. Autora de Mulheres, Cérebro, Coração.
Foto da Capa: Rio Uruguai | Wikipedia
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