Sempre que retorna à baila o tema da eutanásia, lembro-me de um conto de Miguel Torga (foto da capa), médico e escritor português, a respeito de um homem de nome Isaac que havia meses estertorava entre a vida e a morte. O febrão era tal que o médico aconselhou à família que tratasse do caixão. O remédio era chamar Alma Grande que, nessas ocasiões, “ajudava o moribundo a passar desta para a melhor”.
“Estava, tão fraquinho – desculpavam-se os familiares – que nem sequer tem forças para morrer”. Alma Grande então, mediante módica paga, abafando o ainda vivente com o joelho ao peito e o crucifixo apertando a garganta, dizia: “Vai, meu irmão, que Jesus te chama”. Mas com Isaac aconteceu que a “ajuda” do Abafador não foi bem recebida e, com uma voz que parecia vir do outro mundo, gritou: “Não… ainda não miserável”. Foi terrível o que se passou. À luta que Isaac sustentava contra as forças da doença, juntava-se o embate de dois homens, um sabendo que ia matar, outro percebendo que estava sendo assassinado. E, com um esforço supremo do doente cuja vida parecia terminada, este conseguiu livrar-se do crucifixo e do joelho de seu carrasco, o qual, aos olhos de Isaac, parecia estar apavorado diante deste inédito episódio. Aconteceu, então, algo que a ambos surpreendeu ainda mais. Agarrando, por trás, o pescoço do Abafador, estava Abel, o pequeno filho de Isaac, a contrariar os irreveláveis desígnios familiares e a fazer com que Alma Grande desistisse de sua abominável tarefa.
Tempos depois, forte e rijo como um cedro do Líbano, Isaac, que seguia Alma Grande como um cão de fila, numa estrada erma, lhe saltou ao pescoço. Testemunhas, só Deus e Abel, que, sem o pai suspeitar, acompanhava por toda a parte e, escondido, assistia à cena.
Ao agarrar a garganta de seu quase executor, Isaac o olhava com os mesmos olhos implacáveis que lhes viram nas horas de agonia. E com as mãos como tenazes, apertou o garrote no pescoço de Alma Grande, até fazê-lo estrebuchar e morrer.
E assim – conta-nos o médico e escritor Miguel Torga – ficaram em paz os três. Isaac tinha a sua vingança, Alma Grande já não sentia medo e o menino Abel, afinal, tudo compreendera sobre a vida e a morte.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras Todos os textos da Zona Livre estão AQUI. Foto da Capa: Miguel Torga / Divulgação