Dia desses, na minha turma de Medicina, onde leciono uma atividade acadêmica intitulada “Dimensão psicológica do adoecimento”, trabalhávamos o tema da morte, finitude e cuidados paliativos. Dentre tantos debates e ansiedades que pipocam em grupo quando esse tipo de tema vem à tona, falávamos sobre o testamento em vida, um documento legal onde a pessoa expressa suas preferências sobre tratamentos médicos e cuidados de saúde caso fique incapaz de tomar decisões por si. Comentei que já tive pacientes que chegaram a deixar definido que músicas gostariam que tocassem em seu velório.
O tema é pedregoso. Ninguém gosta de falar ou pensar sobre morte, especialmente a própria. Mas essa questão gerou uma fala de um estudante dizendo que qualquer um poderia deixar pronta uma playlist que gostaria que tocasse em seu velório. Uma playlist derradeira. E coloquei-me a pensar na minha, como seria, tendo inclusive aberto uma enquete nas minhas redes sociais pedindo que as pessoas me contassem que música não poderia faltar nessa trilha sonora de um momento tão importante. Apareceram muitas músicas bonitas e importantes. Umas tristes, outras bem animadas e até divertidas para um momento classicamente triste.
Gosto de pensar que as pessoas presentes no meu velório podem ter minha essência presente no ambiente até minha despedida final, gosto de pensar na minha partida. Outro dia pensei que talvez não consiga deixar uma herança muito farta à minha filha em termos de bens ou propriedades, mas pensei nos meus livros lidos com minhas marcações, minhas anotações, para que ela saiba o que me tocou, me emocionou e, à medida que envelheça, vá compreendendo tudo isso. Que ela herde os livros que nunca conseguirei ler e teimei em deixar em minha estante. Outro dia, ela estava observando um quadro que temos em casa, que é um trabalho do artista Ricardo “Pirecco”. A obra é uma foto de 5 palitos de fósforo enfileirados com a palavra “tempo” escrita neles. O primeiro deles ainda intacto e os demais, na sequência, queimados, até o último que tem a palavra tempo quase toda queimada. Ao ver minha filha olhando atentamente esse quadro, perguntei o que ela achava que ele significava. Ela prontamente responde: “Ora, mamãe! É assim: (e foi apontando o dedinho em sequência para o início, meio e fim da fila de fósforos) passado, presente e futuro!”
Passado, presente e futuro, queimando rápido. Tempo voando, e eu pensando nas músicas que gostaria que as pessoas que ainda se importarão comigo quando eu partir ouçam na minha despedida. Isso não é pouco, não é mórbido. É preciso pensar nesses fósforos que estamos queimando, enquanto achamos que a vida é um isqueiro. Clube de esquina nº 5, Pink Floyd, Vitor Ramil – obviamente – Caetano, Bethânia, Adriana Calcanhoto. O repertório de uma vida resumido em horas. Uma busca de uma vida e de um entendimento das coisas resumida em uma biblioteca. Talvez a vida seja mais simples do que pensamos e pensar nessa playlist seja muito maior do que parece.
É preciso, de vez em quando, olhar de frente para a morte, mas nunca tempo demais, da mesma forma que não conseguimos olhar diretamente para o sol tempo demais, como disse Irvin Yalom. Eu até que olho bastante, mais do que a média das pessoas, pela área que escolhi dentro da Psicologia. Isso certamente não é por acaso e eu prezo por essa busca, por esse chamado que é pensar a vida e lembrar da morte.
E você, leitor? Quais músicas escolheria para tocar no seu velório? O que traduziria a essência do que é você e que faria os presentes sorrirem e lembrarem de situações que viveram junto a você?
Talvez a pergunta seja, enquanto ainda estamos aqui, vivos: que trilha sonora você está elaborando até o momento de sua morte? O que toca por aí?
Todos os textos de Luciane Slomka estão AQUI.
Foto da Capa: Foto da obra "Tempo", de Ricardo Pirecco, 2024.