Logo nos primeiros dias da crise climática que o Estado ainda atravessa, o governador do Rio Grande do Sul tomou duas atitudes de grande impacto. A primeira: mudou sua foto de perfil nas redes sociais para uma em que aparece com o imaculado colete da defesa civil que passou a ser seu uniforme. A segunda: disse, no dia 6 de maio, em entrevista coletiva, a frase que hoje se tornou célebre “não é hora de procurar culpados”. Sem surpresa nenhuma, esse foi um discurso ecoado ipis literis por grande parte dos principais colunistas da imprensa hegemônica no Estado – e essa, para mim, é a posição mais curiosa desse imbróglio todo.
A postura de “não apontar culpados” no meio de uma tragédia ainda em curso pode ser defendida com argumentos razoáveis – alguns deles apresentados pelo próprio governador (não no calor da hora, dado que ele parece ter alguns problemas para se expressar de improviso, mas semanas mais tarde, na entrevista que concedeu ao Roda-Viva feito no RS). A ideia de que esse argumento precisasse ser brandido por colunistas de imprensa que achavam válido no meio de toda a confusão dizer que não era preciso “politizar” a questão (demonstrando, mais do que um senso comum preguiçoso, uma burrice de proporções astronômicas, dado que a vida na cidade, a vida na “polis”, é em essência, “política”) me parece menos defensável. O governador, que tem lá suas responsabilidades e era o alvo das críticas, que diga o que quiser para tentar salvar o seu lado, está lá em seu direito. Mas que a imprensa tenha decidido se juntar ao coro é uma das formas mais escrotas de cegueira moral: a adesão à turma do “deixa-disso”.
Deixa-disso
A turma do deixa-disso, ou em um formato mais clássico, o “bloco do deixa-disso” são expressões já bastante arraigadas na cultura brasileira para definir um fenômeno também bastante perceptível e disseminado nessa cultura. O impulso natural a muitos de tentar apartar um conflito em andamento. Claro, na origem, a expressão designa um gesto altruísta voltado principalmente à pacificação de confrontos físicos. Dois homens na rua se empurram, trocam porrada, provocam-se numa escalada de tensão, duas mulheres estão prontas pra voar no rosto uma da outra, duas pessoas descontroladas trocam ofensas cada vez piores em forma e em conteúdo, são estes os momentos para “turma do deixa-disso” agir e impedir que o agravamento da situação leve às vias de fato ou a algum dano mais gravo quando o limiar da violência já foi cruzado.
É curioso, aliás, verificar o quanto o “deixa disso” é, mais do que um gesto de altruísmo individual, um impulso social, traduzido na própria forma como o idioma se refere ao fenômeno: o “bloco” do deixa-disso, a “turma” do deixa-disso, nunca o paladino solitário do deixa-disso, o “cara” do deixa-disso, que seja. O deixa-disso é uma ação partilhada, alicerça-se no reconhecimento de que você não está sozinho tentando apartar uma briga, mas que mais pessoas como você se mobilizaram, garantindo também, pela vantagem numérica, que a ação tenha um resultado melhor do que só você se metendo entre os brigões correndo o risco de apanhar.
É uma tradução na civilidade cotidiana brasileira de um traço já bastante descrito da dinâmica social do país: a tão famosa “cordialidade” que muitos leem na obra de Sérgio Buarque de Holanda para definir o brasileiro (e leem errado, porque nem foi nesse sentido que a palavra foi usada) e é derivada de um impulso quase patológico da sociedade brasileira em evitar conflitos, em não criar climão, em não “fazer fiasco”, como se diz aqui no RS, em não abalar as estruturas – expressão muito pertinente, aliás, dado que a pacificação de um conflito pela extinção forçada, como no caso do deixa-disso, sempre deixa para trás intactas as estruturas que a provocaram.
Insatisfeitos
Curiosamente, há uns anos li um texto inacreditável no site Rede Brasil Atual que usava “turma do deixa-disso” como título de uma reportagem sobre instâncias oficiais de mediação de conflito no ABC paulista, quando esse é, na minha opinião, um termo que não se pode aplicar de modo algum para a conciliação, a composição e a mediação, todos instrumentos legais ou administrativos já bastante conhecidos no país. Uma mediação, por exemplo, implica em uma instituição (seja a Justiça, sejam instâncias da administração pública em vários níveis) apresentar-se como um terceiro equidistante na resolução de um conflito no qual deverá, forçosamente, que haver alguma negociação para que ambos os lados da contenda de algum modo cedam um pouco para ter alguma espécie de pacificação. Mediação é negociar um ponto comum em que se pode vislumbrar as condições de um acordo. O “deixa-disso” é, bem pelo contrário, a interrupção forçada do conflito evitando-se a interação ou a manifestação ou ação de ambas as partes. Não se alcança uma paz de acordo, mas sim dá-se um jeito de que a rusga cesse onde está – garantia certa de que um dos lados, senão os dois, terminará o episódio sentindo-se insatisfeito, logrado e injustiçado. E muitas vezes, não sem razão.
Não à toa, “turma do deixa-disso” como expressão idiomática para se referir aos defensores da trégua em conflitos físicos extrapolou seu uso e hoje traz consigo empregos e conotações para momentos em que não se reconhece apenas o impulso altruísta da pacificação física, mas as intenções algo melífluas de alguém que tem a ganhar silenciando o conflito. Um exemplo extremo: os apologistas de um Brasil em que não há racismo. Outro, mais ameno mas a seu modo também danoso: os que acham que a crítica contundente em um momento como este, em que 90% dos municípios do Estado foram em maior ou menos grau afetados por uma catástrofe tornada pior pela negligência oficial, é “politizar a enchente” ou “destruir reputações”, como juro que li uma pessoa algo limitada intelectualmente argumentar no Xuíter.
O momento logo na sequência de um desastre climático das atuais proporções é exatamente o momento para abrir o conflito e discutir com muita atenção o que está sendo realizado sob o manto protetor do Estado de Emergência. Muitas comparações foram feitas ao longo destas últimas semanas entre a nossa tragédia de 2024 e a destruição provocada na Louisiana pelo Furacão Katrina, há quase 20 anos, em 2005. Pois bem: o Katrina é um ótimo exemplo de como, se deixados sem cobrança ou vigilância, governos comprometidos com o Capital e com uma ideologia política de direita podem piorar o que já estava ruim.
Katrina
Naomi Klein relata em seu livro A Doutrina do Choque, de 2007, como, na sequência do desastre, o papa da economia neoliberal no século XXI, Milton Friedman, viu não um estrago de proporções bíblicas, mas uma oportunidade de ouro. Com o sistema escolar público da região em colapso, era o momento não de investir na reconstrução pelo estado, mas no financiamento da iniciativa privada nesse sentido. Como resultado, a maior parte do sistema de ensino de Nova Orleans foi privatizada no intervalo de 19 meses.
Aliás, Klein lembra também que não apenas o sistema escolar, mas todo o rescaldo do Katrina foi usado como um laboratório da “terapia de choque” que Friedman e seus discípulos acham válido aplicar no mundo para desmontar o que eles consideram um “equívoco” ainda datado da era do New Deal: a presença de regulações estatais na economia (por algum motivo que talvez só tenha explicação na metafísica, tanto Friedman quanto seu mestre Hayek, por exemplo, consideram a economia um “fenômeno natural”, uma espécie de relógio celestial divino que vai trabalhar da melhor forma se deixado sozinho, e toda interferência nesse processo é desastroso. O que para mim é um tanto incompreensível nesse postulado é que, bem, a própria história do capitalismo é cheia de episódios em que os homens se lançam contra as forças naturais e as domam ou as destroem, e nesse caso nenhum neoliberal reclama, haja vista a negação da mudança climática, por exemplo).
Para Klein, o Katrina foi uma segunda oportunidade para a implantação do consenso neoliberal, o primeiro desses laboratórios sendo o Chile de Pinochet nos anos 1970. Mas os dias que se seguiram à tragédia foram também um momento em que um governo Bush, já desgastado pelo custo de suas guerras impopulares e ilegais no Oriente Médio, tentou de todo modo reforçar a validade da doutrina de vigilância social imposta por seu governo na esteira do 11 de Setembro. A destruição dos diques pelo Katrina foi, em um primeiro momento, objeto de um boato que a associava o rompimento a atentados de terroristas islâmicos. O que justificou a mudança de mala e cuia para a região do aparato de perseguição montado pelas agências de segurança do país para “caçar” os supostos terroristas responsáveis. Curiosamente, tanto ano passado quanto agora, bolsonaristas de intenções suspeitas (como se houvesse muitos outros tipos de bolsonaristas, aliás) espalharam boatos parecidos. A ação americana em Nova Orelans, e suas consequencias desastrosas, foi bem documentada por Dave Eggers em seu dilacerante livro Zeitoun, uma reportagem minuciosa sobre um muçulmano morador da região que, após dois dias dedicado a salvar seus vizinhos ilhados em um caiaque, foi preso como suspeito de terrorismo e passou meses numa situação digna de pesadelo kafkiano.
O pós-desastre
Logo, esse é apenas um exemplo de como a sequência de uma catástrofe pode amplificar seus danos. E no caso de Porto Alegre, por exemplo, eu tenho bastante razão para suspeitar de, por exemplo, um prefeito ineficiente que agravou os problemas provocados pela chuva por falta de manutenção e por falta de comunicação transparente (metade dos estragos provocados pela cheia no Guaíba não foram por falha do tão criticado muro, como ouvi muitos dizerem, mas pela falta da manutenção na rede associada, pelo rompimento de uma comporta no Sarandi que a prefeitura já sabia defeituosa, pelo desligamento das bombas de drenagem com o alagamento subsequente da Cidade Baixa e do Menino Deus). Um prefeito que já havia entregado boa parte da cidade à especulação imobiliária selvagem de construtoras que todos sabemos o nome (e que, claro, vêm se mantendo quietinhas depois do desastre). Agora é sim o momento de apontar muito culpados para evitar que o trauma de Porto Alegre vire munição para uma reengenharia social radical e criminosa como a imposta aos atingidos pelo Katrina.
Desde o início da crise, como muitos, fui tragado pela ansiedade e pela obsessão em saber o que viria na sequência em uma catástrofe que parecia não ter mais fim. E muito do que eu consegui saber com certeza e com método, para me tranquilizar ou alarmar, foi providenciado pela ação diligente da UFRGS, por exemplo. E com tudo isso, Sebastião, o Cara Melo, não confundir com o quadrúpede Caramelo (ler aqui), contratou para ação no pós-tragédia uma “consultoria” internacional especializada em controles de danos – de danos à imagem de político incompetente, não os danos reais provocados pelos estragos. Mostrando que também não está muito longe do Cara Melo no espectro ideológico, logo depois o governo do Estado, o da foto do colete, assinou contrato com mesma empresa. Uma das vozes aqui da Sler que também discutiu essa contratação foi Fernando Guedes, neste texto, que recomendo.
Assim, estamos em um momento em que o trauma coletivo pode ser aproveitado por uma visão excludente de sociedade para organizar uma reconstrução gentrificada e uma reengenharia social perigosa. Não é muito hora do deixa-disso, não, o que precisamos é a turma “fica nisso sim”, mantendo o conflito e a discussão antes que decidam passar novas boiadas.
Foto da Capa: Gilvam Rocha | Agência Brasil
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