Sonhei que essa era minha última noite viva antes de um mal agudo entupir meu coração e ele se encharcar até me morrer. Seria fatal e pontiagudo, uma navalha atravessada na minha vida.
Certa desse fim, com uma tranquilidade jamais antes vista para quem sempre, ao contrário, passou a vida trabalhando com a morte para ver se conseguia ser amiga dela – a morte só poderia ser mulher, pois, como todas, é definitiva e irreversível – vivi as últimas horas do meu último domingo fazendo absolutamente tudo que sempre fiz. Janta para a criança, comida aos gatos, lanche encaminhado, uniforme separado. Foi interessante pensar que estaria fazendo tudo pela última vez e ainda que se tratasse de um sonho, vivi a realidade de acreditar estar me dando a possibilidade de viver um posfácio em vida. A obra acabou, mas ainda resta um trechinho final. Me despedi da minha filha pensando que cada boa noite dorme bem te amo é uma despedida da filha daquele dia, daquele corpo, e do meu também. Hoje foi diferente: falei no ouvido dela o quanto eu a amo e o quanto vou estar sempre dentro dela, no coração e na alma dela, cheia de orgulho. Não me angustiei, não chorei. Era um sentimento calmo de despedida interna. Como era um sonho, pensei que isso poderia terminar amanhã. Talvez termine. Talvez esse seja meu último texto. Imaginem só, eu saber que estou escrevendo o último texto dos meus 46 anos de vida e que ele não vai ser estrondoso nem genial, como nada do que fiz até hoje.
O que eu posso dizer em meu derradeiro texto? O que dizer se eu acordar amanhã? Deletá-lo? (O texto, não o amanhã, com sorte) Dizer que fui afortunada por ter vivido um grande amor impossível, mas que ainda assim achou jeitos de se fazer possível por tantas vezes? Nem éramos algo épico como Romeu e Julieta, apenas dois incompetentes apaixonados. Ele era o homem mais genial que já havia conhecido. Ariano torto, vive de amor profundo.
Estou me perdendo. Dizer que terminei minha vida absolutamente sem família de sangue que se ocupasse de mim poderia soar triste àqueles que irão chorar no meu velório. Queria acreditar em vida após a morte só para crer que eu poderia ver minhas amigas irmãs e as pessoas que se deixaram tocar por mim homenageando-me, exaltando lembranças nossas e aí quem sabe eu finalmente pudesse, mesmo que depois de morta, acreditar ser realmente amada. Um buraco sem fundo roubou meu reservatório de aposta. Já nasci perdendo tudo pra banca e ainda, sim, segui jogando alto.
Talvez por isso, agora não tema a morte que está chegando. Não temo mais encontrar minha mãe. Eu já entendi tudo que ela não pôde e tudo que perdi quando ela se perdeu. Não queria deixar de viver, de ter mais livros riscados, de dançar, chorar com as pessoas de que eu gosto. Não queria perder as músicas que ainda não descobri, os beijos que ainda não ganhei, ver minha filha descobrindo o mundo, virando mulher, virando minha página, roubando minhas roupas e meus livros.
Dei boa noite, filha
Dorme bem
Ela me respondeu boa noite, mãe
Até amanhã.
Ele chegou, e se tornou só mais um hoje.
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Foto da Capa: Freepik.