Pra começo de conversa, não gosto muito de chamar música de canção. Tá, tá, tá, tá, tá! – como diria o professor Girafales. Canção é gênero com letra e música. A música pode não ter letra, enfim. Mas canção me soa uma nomeação meio antiquada. O cantor de vozeirão chega ao microfone e fala “agora vou cantar uma canção…”.
Pela minha memória, e nos meios por onde transito, o termo foi reavivado e atualizado pelos estudos do Luiz Tatit. Seu primeiro livro sobre a construção e as relações criativas e de significado no jogo entre letra e melodia se chamou A canção. A partir das suas reflexões, que seguem desvendando e laçando luz sobre essa arte, pensar a composição das canções ganhou novos instrumentos de análise.
Mas o assunto aqui é sobre outro viés. Há canções que são acompanhadas ao longo do tempo por mitos interpretativos. É claro que uma obra de arte é propositadamente criada para que as pessoas façam a sua própria interpretação. Se o criador quisesse que todos entendessem exatamente algo, não optaria pela arte. Faria um texto dissertativo expondo um ponto de vista e os argumentos que o sustentam.
Dito isso, vamos ao caso. Tenho colecionado curtos vídeos que boas almas se encarregam de editar e colocar nas redes. Num deles, Chico Buarque fala sobre a sua canção “Jorge Maravilha”. Essa é uma daquelas em que ele usou o pseudônimo de Julinho da Adelaide para evitar o olhar de lupa da censura sobre cada palavra. Correu e corre até hoje uma interpretação de que o refrão “você não gosta de mim/mas sua filha gosta” se refere à filha do então general e presidente Ernesto Geisel, pois uma vez ela externou ser fã do Chico Buarque. Contudo, em mais de uma vez, e também nesse vídeo, Chico fala que isso nunca passou pela sua cabeça.
Mas uma história real e semelhante à da letra, segundo entrevista dele a Tarso de Castro na Folha de São Paulo, aconteceu quando Chico foi detido certa vez por agentes de segurança e, no elevador, uma espécie de contínuo do delegado pediu autógrafo para a sua filha.
Já eu sempre lembrei direto do Jorge Ben Jor, autor de “Fio Maravilha”, lançada em 1972. “Jorge Maravilha” é de 1973 e tem um início meio falado e um sambalanço como nas canções do Jorge.
Fui procurar no Spotify e ouvi uma gravação do Chico no álbum Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos. Olha o que ele diz: “Vou cantar um pedacinho de uma música que eu tô fazendo (…). É uma música feita em cima de Jorge Ben. Ela é chupada de Jorge Ben”.
Daí o trecho que explicita a referência criativa: “E como já dizia Jorge Maravilha, prenhe de razão:/mais vale uma filha na mão/do que dois pais voando”.
Eu, sinceramente, prefiro lembrar do Jorge Ben Jor a evocar o Geisel.
Foto da Capa: Wikipedia
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